Nos anos 50, Salazar argumentava que “em muitos casos” seria “impossível trazer o indígena ao trabalho e, através deste, ao desejado nível de civilização sem algum constrangimento inicial”. Em 1960, Adriano Moreira, advogava que, ao contrário do que sucedia com trabalhadores brancos, os trabalhadores “indígenas” deviam continuar a ver os seus incumprimentos contratuais ser reprimidos através de sanções penais. A “posição psicológica” de ambos face ao trabalho era distinta, e merecia tratamento diferenciado. Em 1958, Afonso Mendes, administrador colonial e aluno de Moreira, escrevia: “Não haverá um único capataz que não tenha no seu activo uma razoável distribuição de bofetadas e pontapés.” Acrescentava que “a liberdade de trabalhar” para os “negros” era entendida “como liberdade de não trabalhar”. Mendes foi posteriormente nomeado director da inspecção de trabalho de Angola. Da autoria de autoridades oficiais, não de críticos do império, estas citações são conhecidas pelos que se dedicam à história imperial portuguesa.
As recentes afirmações do Presidente da República acerca da escravatura e das respectivas responsabilidades históricas do Estado português revelam-se, portanto, particularmente desfasadas das realidades histórica e historiográfica. A ideia de que a abolição da escravatura, “essa decisão do poder político português”, “foi um reconhecimento da dignidade do homem” e significou a adesão de Portugal “a um ideal humanista que estava virado para o futuro” é delusória. Não foi. Foi essencialmente o resultado, demorado, de pressões externas e de dinâmicas económicas internacionais. A tolerância para com o tráfico de escravos e a escravatura imperou durante todo o século XIX. A abolição de jure não acarretou uma emancipação de facto nem tinha tal objectivo. A história não se esgota em leis ou proclamações políticas. Nem se altera por decreto, ou por repetidas mistificações. A abolição não constituiu, de modo algum, a adesão precoce ao espírito dos direitos humanos que o Presidente evoca.
Quando confrontadas com os estudos de uma longa série de autores nacionais e estrangeiros que, apesar de interpretações distintas, sinalizaram a longa persistência de modalidades coercivas de trabalho “indígena” no império português, as suas declarações são dificilmente compreensíveis. Participam num nacional-ufanismo que faz escola, sempre alimentado por zelotas da lusofonia e por oráculos do interesse ou da “estratégia” nacionais. A insistência na higienização do passado e no obscurecimento das partes espinhosas da história nacional é constante. O mesmo sucede com acusações de complexos de culpa ou de falta de amor pátrio aos que dele dissentem.
A conturbada transição histórica da escravatura para o chamado trabalho “livre” foi marcada por inegáveis continuidades. A abolição, acabando de jure com o direito de propriedade privada sobre os corpos e vidas dos africanos, não acabou com a coerção como elemento fundamental das relações laborais no império. À abolição sucedeu a legalização do trabalho forçado. Os vários regulamentos laborais que lhe sucederam sacralizaram o dever moral e legal de trabalhar do “indígena”. A exploração colonial deveria ocorrer “sem escrúpulos, sem preconceitos e sem quimeras”; “as proclamações liberais e humanitárias” deviam ser bloqueadas, como escreveu António Enes. O trabalho, forçado se necessário, tornou-se o transmissor fundamental da “missão civilizadora”. A persistência da imagem do trabalhador “indígena” como ocioso e infantil, irredimível, medrou. Várias medidas “indutoras” do trabalho, da imposição de obrigações fiscais ao uso de cláusulas de vadiagem, foram legalizadas. As “dificuldades de levar os indígenas a trabalhar” estimularam o engenho legal e político de muitos “humanistas”. Até 1962, as autoridades deviam “encorajar” o indígena a trabalhar. O trabalho obrigatório público era legal. A “civilização pelo trabalho” e a ideia do trabalho redentor tornaram-se uma doutrina oficial. As realidades coloniais continuaram a suscitar regulares denúncias internacionais e resistência local.
A coerção laboral foi assim constante, ainda que com diferentes dinâmicas e impactos locais. Por exemplo, em Angola, em 1953, foram as próprias autoridades que registaram que o trabalho “com facilidades” representava mais de 70% dos contratos celebrados. Os “contratados com facilidade, contratados com intervenção da autoridade, serviçais compelidos” eram “o trabalho forçado”. À época, ainda que de forma experimental e não livre de abusos, outros impérios europeus expandiam os direitos sociais das populações coloniais.
Esta realidade não escapou ao olhar de alguns, muito poucos, críticos internos. Tão pouco escapou a organismos internacionais como o Comité Ad-Hoc de Trabalho Forçado ou a estados como o do Gana, que depositou a primeira queixa de um Estado soberano contra outro na OIT em 1961, acusando Portugal de violar a convenção de trabalho forçado, matéria do direito internacional onde Portugal se distinguia pela omissão e pelo atraso. A abolição de jure do trabalho forçado em 1962 também não constituiu o ponto final do recrutamento e uso coercivo de mão-de-obra africana. Em 1972, a OIT declarava que os seus princípios basilares eram “desrespeitados em absoluto” no “ultramar” português.
Associar a abolição a um acto humanista dos portugueses é reproduzir acriticamente um velho discurso de excepcionalidade nacional. E é desconsiderar todos os verdadeiros humanistas que participaram nesse processo. São de evitar declarações grandiloquentes, mas tão historicamente falhas. A reflexão colectiva sobre o passado das antigas colónias e suas populações e a formação de uma opinião e memória públicas informadas exigem rigor histórico. E exigem uma confrontação sóbria (e empírica) das partes menos palatáveis do passado. O reconhecimento das iniquidades associadas às relações laborais impostas às populações do antigo império é uma obrigação cívica.