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03-04-2003        Visão
Escrevendo no final da 2ª Guerra Mundial, o filósofo Levinas afirma que o horror nazi não o surpreendeu. Segundo ele, não tendo sido inevitável o nazismo, tão pouco surgiu por acaso. A violência e a guerra em que se traduzira estavam inscritas nas concepções de ser e existência que têm dominado o Ocidente. Há nessas concepções uma violência ontológica que consiste em negar a existência do outro como igual. Trata-se de uma ideia colonial do ser que justifica a aniquilação do outro. Levinas pretendia com isto mostrar como surgira o antisemitismo. Penso que a colonialidade do ser e do poder são inerentes às sociedades modernas pelo menos desde o séc. XV e que as suas manifestações são muito mais vastas que o antisemitismo. São o racismo, o sexismo, a guerra, o colonialismo e o imperialismo.
Essa colonialidade consiste em atribuir-se o direito de definir quem é igual e quem é diferente e de decidir a sorte do diferente porque inferior. A justificação da decisão é dupla: por um lado, o inferior é perigoso, por outro lado, não sabe o que é bom para ele. O tempo e o espaço do inferior são vazios de sentido e por isso disponíveis para serem ocupados. Esta ideia de vazio de sentido provém de uma ignorância activamente produzida a respeito do inferior. Do inferior não se pode ter um conhecimento detalhado porque isso complica o objectivo da ocupação. As terras dos indígenas da América estavam vazias porque ocupadas por seres sub-humanos. Tal como para Freud a sexualidade é masculina e a mulher, um ser castrado pronto a ser ocupado pelo desejo do homem. Tal como para Bush os iraquianos desejam a ocupação para serem libertados ou têm de se resignar a serem objectos de ocupação imperial. A possibilidade de resistência por parte deles não cabe na ignorância que se tem deles. Por isso, causa surpresa. É um comportamento bizarro. Porque conscientemente instrumental, o conhecimento que se tem do ser inferior é selectivo, estritamente direccionado para ocupação e imune a qualquer contaminação de proximidade. As bombas inteligentes são a versão mais acabada deste conhecimento em acção.
A ocupação imperial é sempre reivindicada em nome do espaço vital, a expansão do campo de acção para que o ser colonizador possa desenvolver plenamente a sua humanidade. Este espaço vital tanto podem ser as terras indígenas da Conquista, como as terras africanas depois da Conferência de Berlim, o corpo da mulher, dos escravos ou dos recrutados para o trabalho forçado, ou agora os poços de petróleo do Iraque. Para ser eficaz, a reivindicação do espaço vital tem de ser unilateral e inconsciente da sua unilateralidade. Na semana passada, o jornalista financeiro da Antena 1 afirmava com a máxima circunspecção: "Para levantar a moral dos mercados é fundamental que Bagdade seja ocupada esta semana".
A humanidade só pode chegar ao colonizado por via da ocupação. Por isso é tão fácil destruir a democracia em nome da democracia, eleger ditaduras e reservar os direitos humanos para quem os merece. Em 5 de Março, o jornalista da Fox News comentava assim a tortura a que teria sido submetido um alegado membro da Al Quaeda: "é um pedaço de lixo humano sem direitos de nenhuma espécie". A ocupação é uma destruição criadora. Por coerência, a reconstrução do Iraque tem de começar no dia da sua destruição. Quanto mais destrutiva é a ocupação, mais alta é a justificação. Dizia Hitler: "Deus está connosco". Neste particular, Bush não é diferente.
Estava errado Kant quando pensava que o iluminismo traria a paz perpétua. Ao contrário, a guerra é inerente à modernidade. Estava errado Lenin quando pensava que o imperialismo era uma fase superior do capitalismo. Ao contrário, o capitalismo tem sido sempre imperial. Estava errado Marx quando pensava que o capitalismo era um sistema económico. É, ao contrário, um sistema de dominação global que inclui a guerra, o sexismo, o racismo, o colonialismo e o imperialismo.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos