Centro de Estudos Sociais
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17-04-2003        Visão
Issa Shivji é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia). Internacionalmente conhecido e um amigo meu de longa data, foi convidado há meses para participar num Colóquio Internacional sobre o Direito e a Justiça no Século XXI que o Centro de Estudos Sociais está a organizar e que se realizará na Universidade de Coimbra de 29 a 31 de Maio próximo. Com este colóquio, em que participam conferencistas vindos da Europa, África, Américas e Ásia, pretendemos promover uma reflexão internacional sobre os desafios que o direito e a administração da justiça enfrentarão nas próximas décadas. Entusiasmado, Issa Shivji aceitou há meses o convite. Na semana passada escreveu-me a decliná-lo, com a justificação de não querer continuar a colaborar com os países ocidentais depois da invasão ilegal do Iraque e da barbárie high-tech infligida aos iraquianos. Diz ele a certa altura: "Como poderei eu teorizar sobre o direito e a justiça como campo de luta pela libertação dos oprimidos, tese que me é tão cara, quando bombas americanas pesando uma tonelada e rotuladas "libertação do Iraque" enterram crianças de 13 anos, como o meu filho, em profundas crateras... A hegemonia institucional das nossas universidades apenas nos permite partilhar a nossa indignação nos bares, ao final da tarde, depois de termos apresentado as nossas circunspectas comunicações sobre o direito e a justiça. Basta de esquizofrenia intelectual!"
Respondi-lhe, pedindo que reconsidere. Eis alguns trechos da minha mensagem: "A tua integridade moral e política, a tua lucidez crítica a respeito das concepções hegemónicas dos direitos humanos, a tua luta pela democracia participativa e por um conhecimento solidário estiveram na base do convite que te dirigi e, naturalmente, dói-me o coração que sejam essas mesmas razões as que te levam a declinar o nosso convite. Queria dizer-te que a ciência que procuramos realizar aqui tem muitas atinências com a que tens vindo a realizar de modo brilhante. Para nós a ciência, objectiva mas não neutral, é um exercício de cidadania e estamos certos de que não há justiça social global sem justiça cognitiva global... Ao contrário de Habermas, penso que o nazismo e Bush não são desvios ou aberrações da modernidade Ocidental. São constitutivos dela. Não tinham de acontecer necessariamente, mas tão-pouco aconteceram por acaso. Como português, sinto-me envergonhado e revoltado com a posição do governo do meu país a favor da guerra, quando a grande maioria da população é contra. Tenho vindo a lutar contra essa posição por todos os meios democráticos ao meu alcance. Mas a luta tem de ser global e tem de nos mobilizar a todos.
A ciência e os cientistas não podem dispensar-se de responder à questão: de que lado estou? Porque se o fizerem estão, de facto, a alinhar com a barbárie. Como sabes, tenho estado muito activo nos trabalhos do Fórum Social Mundial e a ideia que nos norteia é que não podemos render-nos ao pensamento único e à arrogância tecnológica do capitalismo selvagem e belicista. Não podemos desistir. É isso o que os falcões instalados na Casa Branca desejam.
Por isso, meu Caro Issa, peço-te que faças da visita a Coimbra um momento de denúncia e de luta. Não quero que faças uma comunicação com ideias diferentes das que constam da tua mensagem. Se não vieres, lutaremos sem ti, ainda que a pensar em ti. Será, pois, mais difícil. Daí o meu pedido para que reconsideres. Os nossos filhos reconhecerão que as nossas ideias e as nossas lutas por uma sociedade mais justa e solidária não têm a eficácia das bombas, mas são a única alternativa digna de seres humanos."

 
 
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Boaventura de Sousa Santos