Em Portugal a classe política vive na ilusão de que as crises se resolvem ou se mitigam por via legislativa. Mais, alimenta a ideia de que pela produção de leis se conformarão comportamentos e configurações institucionais, conduzindo a mudanças profundas na sociedade. Isto num país onde vários estudos já mostraram que, de forma lapidar, o Estado perante acontecimentos extremos, e quando posto à prova, aparece sempre maior do que os seus cidadãos e cidadãs, aos quais é sonegada uma pertença digna. Na sua configuração de Estado controlador e autocentrado, aquilo a que se assiste sempre é à ativação de estratégias de enquadramento que reorientam os fundamentos das interpelações a que o Estado é submetido, sem consequências significativas no reforço dos direitos de cidadania. Esta tendência é sobretudo visível após acontecimentos extremos associados a riscos naturais e tecnológicos, onde raramente emergem associações ou movimentos sociais reivindicativos de direitos de cidadania ou de reparação de danos.
Após um ano de 2016 em que arderam mais de 160 mil hectares de floresta, e como acontece sempre que a projeção mediática indicia uma situação de crise (como refere Manuel Carvalho em crónica no Público de 6 de fevereiro de 2017), assiste-se de novo à proposta e aprovação de um pacote florestal, com nada mais nem menos que 12 medidas. Além disso, e numa visão mais estrutural, os responsáveis políticos avançaram com a proposta de reformulação da proteção civil, designada na nova fórmula redundante e pouco intuitiva como “proteção civil preventiva”. Também na sequência da proposta de projeto-lei de descentralização de competências, não só os municípios assumiriam novas responsabilidades e atribuições na área da proteção civil, como as freguesias seriam dotadas de unidades locais de proteção civil, participando “na avaliação das vulnerabilidades, na sensibilização e informação ao público e no apoio à gestão de ocorrências, nos termos definidos nos planos de emergência”. Este afã legislativo mesmo assim ocorre com o governo que menos leis e decretos-lei aprovou desde 1976 (como noticia o Jornal de Negócios de 29 de março de 2017).
Após críticas de entidades relevantes na área como a Liga dos Bombeiros Portugueses, alertando sobretudo para as questões e as dificuldades operacionais, a componente de proteção civil a atribuir às juntas de freguesia aparece praticamente esvaziada na última versão da proposta de projeto-lei.
A nível de princípios, a proposta governativa portuguesa poderia afigurar-se fundamental, apoiando-se no documento orientador da Comissão Europeia que define a estratégia europeia para a implementação do Quadro de Sendai (documento SWD(2016) 205 final/2, de 17 de junho de 2016). Com efeito, neste documento a área prioritária 2 acentua o trabalho com as entidades interessadas, sobretudo autoridades e comunidades locais, no desenvolvimento de estratégias de consciencialização dos riscos e de medidas inclusivas de mitigação do risco.
Ora, a estrutura de proteção civil em vigor em Portugal, instituída por lei em 2006 após o ano de crise de 2003 (incêndios florestais, sobremortalidade por onda de calor, etc.), é hierárquica e fortemente centralizada na sua dinâmica de comando e na sua operacionalidade, numa lógica quase militar. Ausentes da sua filosofia ou lógica de atuação estão todos os conceitos relacionados com participação cidadã ou com estratégias de fomento de epistemologias cívicas, ou, pelo menos, de divulgação de informação capacitadora sobre cartas de riscos ou vulnerabilidades sociais, indutoras de comportamentos de autoproteção.
O alto nível de profissionalização e de competência técnica dos diferentes departamentos da Autoridade Nacional de Proteção Civil contrastam e esbarram com a rotatividade assente em ciclos políticos da estrutura operacional da proteção civil, com saídas e entradas constantes dos comandantes nacionais e distritais. Também a estrutura operacional da proteção civil necessita de consolidação de competências, de redes de interconhecimento, de capacidade de liderança, de confiança interinstitucional para ser eficaz e estar ao serviço dos cidadãos e das cidadãs.
Cientistas sociais de diversas orientações políticas têm alertado para a falácia da mudança social por decreto. Michel Crozier, um sociólogo francês conservador, que perante a iminência da tomada do poder em França pela esquerda, escreveu em 1979 o livro On ne change pas la societé par decret (não se muda a sociedade por decreto) que, independentemente de críticas contundentes e fundamentadas sobre o seu voluntarismo e a visão liberal da ação individual, apontou o peso da burocracia, a dificuldade das mudanças coletivas e o uso ineficaz dos decretos. James Scott, um sociólogo norte-americano libertário e anarquista, na sua obra de referência Seeing like a State (vendo como um Estado), mostra como o que chama de “modernismo avançado” se baseia numa engenharia social baseada na ciência e apoiada em planos e decretos, desvalorizando os conhecimentos e as práticas sociais locais.
A democratização da estrutura da proteção civil em Portugal não se promove por decreto, mas sim pela efetiva participação dos cidadãos e das cidadãs na revisão dos planos municipais de emergência e na produção e conhecimento da carta de riscos e de vulnerabilidades sociais. A democratização deve assentar mais na lógica do conhecimento e das práticas quotidianas no que em qualquer atuação esporádica de caráter operacional.