Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
15-05-2003        Visão
Escrevi recentemente que somos um país em que as elites sociais, políticas e económicas estão habituadas à impunidade que lhes tem sido, em parte, garantida pelas debilidades da nossa investigação criminal e pela pusilanimidade dos nossos magistrados. Vivemos um momento crucial em que esta situação parece estar de algum modo a inverter-se, sendo visível alguma capacidade e alguma vontade política para começar a investigar e a julgar "os de cima". Mas, para que esta tendência se consolide, é fundamental que o sistema judicial assuma a responsabilidade de alterar algumas características estruturais do seu funcionamento presentes, de forma paradigmática, no caso da fuga de Fátima Felgueiras.
A arguida Fátima Felgueiras é suspeita da prática de vários crimes de corrupção passiva, abuso de poder, peculato e participação económica em negócio. Ao que tudo indica, a arguida estava em Portugal no dia em que foi proferida a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães sobre a sua prisão preventiva. E os agentes judiciais, por negligência ou praticando o crime de violação do segredo de justiça, permitiram a sua fuga, provavelmente para o Brasil. O sistema judicial é, individual e colectivamente, responsável por essa fuga e tem que saber assumir essa responsabilidade. O processo Fátima Felgueiras encontra-se numa fase secreta, cujo acesso a lei veda a pessoas não autorizadas e obriga todos os que a ele têm acesso ao dever de guardar segredo, sob pena de incorrerem no crime de violação do segredo de justiça. Quando está em causa a criminalidade complexa, cometida por pessoas económica ou politicamente importantes, o sistema judicial tem que ter mecanismos que operem eficazmente no que respeita à guarda efectiva dos processos. Se o processo é secreto, é preciso "guardá-lo", definir expressamente quem tem acesso a ele de modo a diminuir as fugas de informação e, quando aconteçam, a poder identificar e punir exemplarmente os seus responsáveis.
Domina hoje uma cultura judiciária normativista e técnico-burocrática que não exige tratar de forma diferente o que é diferente. O sistema na sua "cega" rotina não distingue os processos. Se a lei indica, em geral, que seja tornada pública a decisão de um acórdão, a rotina "manda" afixá-la ou permite o seu conhecimento alargado sem especiais cautelas de reserva, mesmo que se trate de uma decisão que manda prender uma pessoa com o poder da arguida, indiciada pela prática de vários crimes, cuja, eventual, condenação a levaria à prisão por largos anos. Neste caso, a negligência é ainda mais grave porque é o próprio Tribunal que invoca como fundamento para a decisão de prisão preventiva a existência de sério risco de que a arguida se ausente para fugir à acção da justiça, risco potenciado pela sua, muito provável, dupla nacionalidade luso-brasileira. Aos olhos do cidadão comum, é da mais elementar regra de bom senso que, se o Tribunal considerava a existência de perigo de fuga, teria que acautelar o efeito útil da sua decisão, isto é, teria que mandar passar de imediato os mandados de detenção, esperar que eles fossem cumpridos e só depois publicitar a decisão do acórdão.
Se o sistema judicial quer, de facto, assegurar a operacionalidade e a eficácia da investigação e da acção penal, se quer inverter a tendência de desqualificação e de deslegitimação social e política da justiça não pode, neste caso, recorrer à "tradicional" desresponsabilização institucional e transferência de culpas. Num Estado democrático a responsabilidade institucional do sistema judicial é a outra face da sua independência. O sistema judicial português tem, neste caso, uma excelente oportunidade para mostrar que não quer declinar essa responsabilidade. Estaremos atentos.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos