Centro de Estudos Sociais
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29-05-2003        Visão
Decorre hoje e amanhã, na Universidade de Coimbra, um colóquio internacional intitulado "Direito e Justiça no Século XXI", organizado pelo Centro de Estudos Sociais. O momento não podia ser mais oportuno. Nestas últimas semanas, o sistema judicial assumiu um protagonismo sem precedentes na actualidade mediática e política do nosso país. Instalou-se a ideia de que estamos perante um conflito entre o sistema judicial e o sistema político, algo que não é normal num estado democrático, uma vez que a separação de poderes atribui a cada um uma esfera distinta de acção funcional e um conjunto de competências e prerrogativas quando muito complementares e nunca rivais. A anormalidade causa turbulência institucional e perplexidade entre os cidadãos. Estes perguntam-se porquê tudo isto aconteceu e quais as suas consequências. E não parece haver razões para optimismo dado que os analistas são unânimes em prever que deste conflito pelo menos um dos dois sistemas sairá perdedor, se não mesmo os dois. Nenhum admite a possibilidade de os dois saírem ganhadores.
O colóquio que se está a realizar em Coimbra contribuirá, por certo, para contextualizar o nosso drama político-judicial num vasto horizonte internacional e, com base nisso, para identificar as condições que poderão vir a desmentir os cenários propostos pelos nossos analistas. A primeira verificação é que as situações de stress institucional entre o sistema político e o sistema judicial têm vindo a ocorrer com crescente frequência nos mais diferentes países, sendo de prever que esta tendência se acentue no futuro próximo. As razões diferem de país para país, mas algumas são comuns a vários deles. Desde o início da década de oitenta está em curso a nível internacional uma profunda transformação do Estado moderno, cujas linhas principais são as seguintes: fim do Estado empresário e a consequente privatização de empresas e dos serviços públicos; atenuação do controle estatal da economia, crescentemente internacionalizada; declínio dos direitos sociais e económicos universais que estiveram na base do Estado-providência e sua substituição por medidas focalizadas de protecção a grupos sociais vulneráveis; substituição da ideia do projecto político nacional pela do respeito da legalidade democrática garantida pelos tribunais. Consequências destas transformações: aumento das desigualdades sociais; emergência de novos actores económicos e sociais com poder para manipular as políticas estatais a seu favor, aproveitando a crise da ética republicana do serviço público; imensas oportunidades para a corrupção facilitada pela atenuação das clivagens ideológicas e sua substituição pela mediatização dos políticos; consciência acrescida dos direitos e da violação dos direitos por parte dos cidadãos e seu ressentimento contra uma justiça morosa, selectiva e ineficaz; pressão da opinião pública sobre o sistema judicial para que termine com a impunidade dos poderosos; apropriação selectiva da conflitualidade social e institucional por parte dos meios de comunicação social movidos por interesses económicos e políticos próprios.
À luz destas transformações, a separação dos poderes deixou de ser o que era e a turbulência que isso causa coloca as instituições no fio da navalha. Em período de stress institucional não se mudam as regras de jogo, mas o cumprimento exigente das existentes pode apontar para a urgência de maior transparência na vida pública e para novas exigências democráticas de prestação de contas, tanto por parte do sistema político como por parte do sistema judicial. E, se assim for, não é impossível imaginar um cenário em que ambos saiam ganhadores do conflito em curso.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos