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31-03-2017        As Beiras

Os conimbricenses puderam observar, nos últimos dias, a operação de desbaste da base do monte onde se apoia o torreão norte do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Nada menos que quatro escavadoras estiveram, durante cerca de quatro semanas, a retirar terra e a alterar dramaticamente a topografia da área envolvente do Mosteiro seiscentista (ver foto) para a construção de um supermercado.

Sucede que o Mosteiro da Santa Clara-a-Nova é, desde há cem anos, Monumento Nacional e que a área da intervenção em causa está incluída na Zona Especial de Proteção (ZEP) do mosteiro – Portaria 381/2009 publicada no Diário da República, 2ª série, nº49, de 11 de Março.

Portanto, para a obra estar hoje a decorrer houve, naturalmente, o beneplácito da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) e, sobretudo, terá havido a autorização escrita e declarada das instituições que são responsáveis pela salvaguarda do património – em particular a Direção Regional da Cultura do Centro (DRCC).

De facto, e de acordo com o Decreto/lei 114/2012, de 25 de Maio, que regula as competências das Direções Regionais de Cultura, cabe à DRCC “pronunciar-se (…) sobre planos, projetos, trabalhos e intervenções de iniciativa pública ou privada a realizar nas zonas de proteção dos imóveis classificados” (art.º 2º, n.º 3, alínea a). Desde logo considero a lei mal feita. Não deveria caber a um instância regional ter a última palavra sobre exceções ao regime de salvaguarda de um bem que é Monumento Nacional.

Mas vamos por partes.

A obra em causa, em termos de estratégia urbana, não se percebe: pretende-se fazer um supermercado a menos de 500 metros do “Fórum” (onde existe um hipermercado “Continente”) e de outros dois supermercados (“Lidl” e “Intermarché”) situados no alto de Santa Clara. Como resultado desta operação teremos, no sopé do monte, ao longo da Avenida da Guarda Inglesa, o Convento de São Francisco/Centro de Congressos, um bloco residencial recente, uma oficina e armazém de pneus pré-existente e agora um novo supermercado – uma sequência que seguramente ficará para os anais da suburbanidade (veja-se sobre este tema o livro de Álvaro Domingues, A Rua da Estrada, Porto, Dafne, 2009 ).

Esta falta de planeamento, a meu ver, só pode ser assacada à ausência geral de planos de pormenor desenvolvidos pela CMC e discutidos publicamente, que são obviamente um instrumento de ordenamento fundamental – sobretudo em zonas da cidade que deveriam ser, manifestamente, valorizadas (como é o caso).

Evidentemente (e é importante sublinhar este ponto) não coloco a discussão ao nível do projecto de arquitectura, que aliás desconheço (nem tenho ideia que tenha sido apresentado ao público), projeto que, admito, minimizará alguns impactos paisagísticos da intervenção. A questão põe-se a montante e nos dois níveis que referi – o do planeamento municipal e o do critério das autoridades que deveriam zelar pela salvaguarda do património em Portugal.

Sobre a presumível atuação da DRCC neste processo, é para mim incompreensível que esta entidade tenha aceitado o risco de se sacrificar a envolvente paisagística do Monumento Nacional / Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, devidamente salvaguardada na Zona Especial de Proteção (ZEP), abrindo uma exceção a essa mesma ZEP para a construção de um mero supermercado. Como referi, trata-se de um programa que já existe na proximidade, que necessita de bastante área plana (tanto para a zona comercial como para o estacionamento) e que é, a meu ver, totalmente desadequado ao lote de terreno em causa, na base de uma encosta de declive bastante acentuado.

Relembro que o novo imóvel está licenciado para dois pisos de altura e que o desbaste já vai seguramente ao nível de um quinto ou de um sexto andar. Relembro ainda que o impacto paisagístico do desbaste da encosta é claramente visível de qualquer ponto elevado da cidade.

Aliás, podem ver-se em Coimbra exemplos consumados deste tipo de intervenção topográfica (na própria encosta da Avenida da Guarda Inglesa ou no vale de Coselhas) onde despontam barrancos de terra escavada, de vários andares de altura, por detrás de imóveis recentemente construídos. Não se percebe, de resto, que não se utilize no Plano Diretor Municipal um índice de limitação dos movimentos de terras por m2 de área de terreno – o que faria todo o sentido numa cidade com a topografia acidentada como a de Coimbra.

Considero, pois, que a intervenção de desbaste que decorre atualmente na encosta de Santa Clara viola claramente o espírito com que foi definida a Zona Especial de Proteção (ZEP) do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova em 2009. Foi precisamente para evitar intervenções significativas na paisagem e na topografia envolventes que se definiu a ZEP com os limites em questão.
Deixando de lado o “detalhe” de estarmos a falar de uma cidade que contém um bem – a Universidade de Coimbra – que é património mundial da Unesco, resta perguntar, como cidadão, para que serve efetivamente publicar-se todos os anos, em Diário da República, linhas e linhas de legislação patrimonial e de salvaguarda?


 
 
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Rui Lobo