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29-03-2017        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

As minhas primeiras performances aconteceram nos anos 80, década da afirmação de um ressurgimento da pintura, como se esta tivesse interrompido o seu curso. Era uma altura em que a performance se afirmava em grande vitalidade mas em que também era comum perguntarem- nos: “ainda se faz performance?”, o que hoje parece muito estranho, neste renovado interesse sobre a performance e a sua história (as coisas que se diziam, quando a arte se pretendia renovada em cada década... ou, melhor, quando havia décadas, porque nestes primeiros anos, a partir do ano 2000, só parece que temos um milénio pela frente). Por outro lado, começando a ser pintor mesmo antes de entrar na Escola de Belas Artes (no Porto), e também performer, pelo contacto com os que viveram os heroicos anos 70 do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, nunca teve para mim qualquer sentido uma ideia de performance enquanto negação da materialidade do objecto artístico. A efemeridade na performance nunca foi para mim bum valor em si, até porque ela fazb com que o que é efémero perdure. E mais que isso, pelo que acontece ao tempo durante a própria acção, porque tem a qualidade de suspender o tempo, usando o tempo.

Na arte enquanto possibilidade de criar imagem, o todo de uma performance é uma imagem só. Poder-se-ia falar do seu carácter pictórico, se escolhermos encarar a pintura como podendo ser o princípio de alguma coisa e não propriamente consequência. Talvez, e de uma forma mais veemente, nos meus primeiros trabalhos, a performance aparecia como uma possibilidade de acesso ao princípio das coisas, o artista em discurso directo, usando o seu corpo como se se estivesse a livrar dele, tornando-o outro. E uma forma de fazer arte como se se estivesse simultaneamente a pensar sobre ela... Nos anos 80, pelo menos nos festivais em que participei, em Almada (e também Coimbra, Porto, Cascais..), Paris, Kassel, Amesterdão, surgia como uma espécie de universo paralelo em que os artistas criavam um outro lugar para existir. Com a dignidade das coisas precárias, onde qualquer possibilidade de glamour só existiria como referência desconcertante. Uma espécie de saltimbancos que se comportavam como se fossem livres.

No meu trabalho como artista, posso dizer que a performance é absolutamente estrutural. Nos jogos conceptuais da própria pintura, é o seu sentido performático que está em jogo. É na performance que a pintura se joga, como nas canções que aparecem nos vídeos e nos concertos e, sobretudo, no trânsito entre estas coisas todas. Para falar de uma só, a primeira escolha seria uma das minhas performances em que procurava dançar sem sair do mesmo lugar. Estas primeiras performances, tenho sempre que as referir pelo seu carácter seminal, até porque estão sempre presentes, são contemporâneas de tudo o que faço... o que não constitui propriamente uma singularidade minha, porque será assim que a arte se relaciona com o tempo. Aqui, escolho uma do ano passado, numa série de noites de performance (Maus Hábitos, Porto) a propósito da «Sala» um espaço da Susana Chiocca e do António Lago que já faz parte da história da performance em Portugal e onde, literalmente, as performances aconteciam na sala do seu apartamento, o que lhes conferia uma dimensão doméstica, uma consciência das várias escalas do espaço da performance, física e conceptualmente. Nela, eu cantava, com a Marilyn Monroe, "I’m through with love". Claro que nela ninguém acredita. Ninguém acreditava nela (nem quereria acreditar), que não tivesse mais qualquer disponibilidade para o amor… Também ninguém acreditaria se eu dissesse: "I’m through with art" o que não é quase a mesma coisa, mas pode passar por ser… O vídeo com o mesmo dueto esteve no projecto Contentores em Cascais (num contentor junto ao do Xana) e, aí, o que se via eram as minhas mãos desenhando, ou jogando com a expectativa de desenho num movimento que por vezes poderia passar por ser quase uma espécie de dança (uma mão com a outra...). E fará parte de uma exposição que vou fazer na galeria Fernando Santos. Um mote para uma exposição com muitos mais desenhos que pintura (e onde o próprio jogo conceptual da pintura é muito sobre o desenho, ou melhor, sobre as coisas em que podemos pensar quando pensamos em desenho…). As coisas vão dando origem a outras e tudo parece acontecer no mesmo tempo… Digo eu, que já ando nisto da arte há algumas décadas. Para já, 3…

No dia 14 de Abril, no S. Luiz, para o Projecto P!, neste trânsito entre as canções e as performances, parto de 20 years in a plane, uma canção que fiz com o João Taborda e que aqui terá uma nova versão. Porque se acrescenta a voz (e a presença) da actriz Margarida Correia. O facto de ser minha filha ajuda na disponibilidade para os ensaios, mas também na de uma voz critica e pertinente. Aqui, explora uma presença cândida e, provavelmente, desconcertante na relação com a violência das imagens de um mini-projector acoplado ao seu microfone. Eu estarei atrás, noutra imagem que se projecta no plano frontal do palco. A minha cabeça em grandes dimensões, cantando, num jogo de escalas que se desdobram em vários sentidos...

Esta performance começou a ser desenhada assim para permitir a possibilidade da ubiquidade porque tinha um concerto marcado em Londres para o mesmo dia. A data do concerto foi mudada, mas a performance acontecerá da mesma forma e eu estarei, fisicamente, como público. E é com a maior satisfação que descubro as potencialidades conceptuais da ausência física do performer. Perspectiva que nunca me interessou, e foi preciso a simplicidade do pragmatismo, de resolver uma questão prática, para me motivar a fazê-lo. Mas esta ausência física não é, de todo, um lugar a que cheguei na performance, mas sim uma situação por onde passei, sempre em trânsito para outra coisa. Um movimento nem sempre, futuristicamente, veloz, mas aqui celebrando os (mais de) cem anos do Futurismo, ou, melhor, a possibilidade do tempo em que o conceito de Futuro era outro, por ser mais, muito mais que hoje.

2017 (futuristicamente, no comboio de Lisboa para Coimbra)


 
 
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