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12-06-2003        Visão
No momento em que escrevo, o Fórum Social Português (FSP) ainda está a decorrer mas pode dizer-se desde já que teve pleno êxito. Pela participação que teve de cidadãos e de delegados de movimentos e associações, pelo modo como decorreu e pela variedade dos temas que nele foram discutidos, o FSP constituiu um facto político da maior importância, o seu significado tornar-se-á ainda mais claro à medida que se avançar na preparação do segundo FSP. O FSP ocorreu num momento oportuno. O país atravessa um período complexo em que se combina a crise económica com a instabilidade política decorrente da turbulência institucional provocada pelos casos de corrupção e de pedofilia. É um período que, para ser ultrapassado sem grandes convulsões, exige que todas as energias democráticas dos portugueses sejam convocadas.
Hoje, mais do que em qualquer outro momento nos últimos 29 anos, os partidos políticos não estão em condições de, em exclusivo, canalizar e fazer frutificar essas energias. Para além delas, existem, hoje, entre nós, centenas de movimentos sociais e de associações, a maioria de âmbito local especializado, mas muitas de âmbito nacional e generalista em que participam milhares de cidadãos que, numa lógica solidária e não competitiva (a lógica que caracteriza a acção dos partidos), lutam pela dignificação democrática das lutas dos trabalhadores, das mulheres, dos emigrantes, das vítimas das falências, das crianças e dos jovens, dos utentes dos serviços públicos, dos imigrantes, dos ecologistas, dos cooperativistas e dos agentes de desenvolvimento local, da educação intercultural, da luta pela paz, por uma comunicação social solidária e democrática, pela preservação e não privatização da água, pela gestão municipal participativa, por um novo ordenamento do território, contra a violência doméstica e sinistralidade laboral, o sexismo e o racismo, a manipulação genética dos alimentos, o tráfico de órgãos e a prostituição infantil e de mulheres.
Deste vasto leque de preocupações e de aspirações democráticas só uma pequeníssima parte entra na agenda política do governo ou do parlamento. O primeiro contributo do FSP para a democracia portuguesa é, pois, o de contribuir para o alargamento da agenda política como meio de diminuir a enorme distância que hoje separa representantes e representados bem traduzida no aumento do abstencionismo. Mas o contributo do FSP para a nossa democracia é ainda outro mais decisivo: fortalecer as bases para a emergência entre nós de uma democracia de mais alta intensidade assente na complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa. As experiências embrionárias que já existem a nível municipal vão certamente proliferar depois do FSP. Esta nova configuração democrática assenta numa relação de tipo novo entre os partidos, por um lado e movimentos e associações, por outro. Começou a ser gestada no FSP. A relação entre partidos e movimentos não tem sido fácil por duas razões principais: por um lado, os partidos arrogam-se o monopólio da política e por isso ou ignoram os movimentos e associações, ou os hostilizam, ou os tentam instrumentalizar; por sua vez, muitos movimentos e associações consideram-se apolíticos, ou promotores de uma política incompatível com a dos partidos. O processo de construção do FSP foi um processo complexo e muito rico precisamente porque partiu destas posições para, a pouco e pouco, chegar outra em que se reconhece a autonomia recíproca dos partidos e movimentos e se reconhecem as possibilidades de complementaridade entre uns e outros no aprofundamento da democracia.
O primeiro FSP foi um facto político novo por tudo o que aconteceu nele - pelos debates sérios e a convivência pacífica, fraterna e jovial - mas foi-o sobretudo porque, a partir dele, a política deixou de ser entre nós monopólio, quer dos partidos, quer dos movimentos. A política reside na relação virtuosa entre uns e outros. Por isso, a nossa política será diferente depois do primeiro FSP e, quiçá, ainda mais depois do segundo que, por certo, se realizará.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos