Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
19-06-2003        Público
Meu Caro Manuel Carvalho da Silva
Conhecemo-nos há muitos anos, tenho por si muita estima e nada me leva a pensar que ela não seja recíproca. Tenho colaborado em múltiplas ocasiões com a CGTP. Ainda há poucas semanas tive o gosto de ter uma reunião consigo e com mais dois dirigentes, a vosso pedido, no âmbito da preparação do próximo congresso da Confederação. Dei-vos como melhor pude e soube a minha opinião sobre o modo como analiso hoje a questão do Estado, das instituições e da administração pública no nosso país. Nada, pois, me move contra a CGTP e, pelo contrário, quero que identifique nesta carta o mesmo espírito solidário e independente que sempre tem pautado as minhas relações com a organização a que preside.
Dirijo-me hoje publicamente a si para lhe manifestar a minha revolta pelo modo como a CGTP actuou na Assembleia dos Movimentos Sociais, que se reuniu no último dia do Fórum Social Português (FSP) e na manifestação que se seguiu. O único tema da Assembleia dos Movimentos Sociais era a aprovação por consenso de um documento que traduzisse as preocupações e os anseios das mais de duas centenas de movimentos e associações que participaram activamente no Fórum Social Português. O modo como o documento foi redigido não foi certamente o melhor e é legítimo que muitos dos movimentos e associações não se revejam plenamente nele. Não foi, no entanto, esse o caso da CGTP já que integrou a comissão que o redigiu. No entanto, todos os movimentos e associações aceitaram a regra do consenso e procuraram enriquecer o texto durante os debates sem quebra dessa regra. Foi o caso da Pro Urbe, de Coimbra, de quem fui delegado no Fórum. O documento continha duas ideias centrais. A primeira era que desde o início da preparação do primeiro FSP se tinham agravado, tanto a nível global como a nível nacional, as condições de vida da grande maioria dos cidadãos impostas pelo neoliberalismo, pelo que a realização do Fórum fora ganhando oportunidade e urgência ao longo dos meses de preparação. A segunda era que o FSP fora um êxito; permitira debater e dar voz a um conjunto muito vasto de aspirações democráticas e de lutas contra as múltiplas formas de discriminação e de exclusão no nosso país e mostrara a sua potencialidade para contribuir para o enriquecimento da democracia representativa, através da mobilização dos instrumentos da democracia participativa. A Pro Urbe, por meu intermédio, propôs que se enriquecesse o texto com uma terceira ideia que parecia igualmente consensual entre os movimentos e associações justamente satisfeitos pelos resultados do seu esforço organizativo: a decisão de se realizar um segundo FSP. Tendo em vista as conhecidas resistências da CGTP, a proposta da Pro Urbe estava formulada num espírito de consenso. Dizia assim: "muitos movimentos e associações estão já dispostos a organizar o segundo FSP, enquanto outras, com total legitimidade, pretendem avaliar o primeiro Fórum antes de decidir da participação no segundo". Mesmo assim, a CGTP vetou esta proposta com a justificação de que se não poderia manifestar a favor do segundo Fórum sem avaliar o primeiro. Esta justificação não convenceu ninguém já que a avaliação estava afinal feita no documento proposto à Assembleia e já que o modo mais convincente de afirmar o êxito do primeiro Fórum seria - tal como acontecera com o primeiro Fórum Social Mundial - anunciar a disponibilidade para a realização do segundo.
Porquê então o veto? Desde os primeiros dias do Fórum a razão evidente era bem outra: o PCP, inconformado com o facto de não ter podido instrumentalizar o FSP, mostrara a sua hostilidade à ideia de transformação do FSP, de um evento isolado, num processo de participação democrática alargada e continuada dos cidadãos. Como salientou Jerónimo de Sousa, numa mesa de diálogo e controvérsia, "o Fórum começou a 7 de Junho e termina a 10". Ficou claro para todos que a CGTP foi posta na posição de actuar na Assembleia como correia de transmissão do PCP. A desculpa da necessidade de avaliação parecia esconder (e muito mal) a tentativa de interferir na constituição da comissão organizadora do segundo Fórum antes de se comprometer com a sua realização. Queria dizer-lhe publicamente, Meu Caro Carvalho da Silva, que se tal tentativa existir ela não terá êxito porque, se tivesse, não haveria de facto segundo Fórum e os movimentos e associações querem o segundo Fórum.
Um sinal evidente disto mesmo foi o que se passou na manifestação. Nos dias anteriores fora feita uma tentativa de consensualizar a organização da manifestação, posicionando à frente os movimentos e associações e os partidos atrás. O PCP e a CGTP opuseram-se e, como tal, não restou outra solução senão a de caber a cada organização decidir a sua própria integração na manifestação. A CGTP e o PCP posicionaram-se na frente e esperaram que os movimentos e associações os seguissem. Tiveram efectivamente de esperar muito tempo porque os movimentos se recusaram a segui-los e fizeram, de facto, a sua própria manifestação. Confesso-lhe que foi para mim confrangedor observar a CGTP e o PCP acantonados no centro dos Restauradores, a ver passar uma alegre, pacífica e plural manifestação de vontade democrática. Foi um momento patético e poderosamente metafórico: uma "vanguarda", congelada no seu próprio isolamento, a assistir incrédula e impotente à "fuga" do que para ela não era mais que uma retaguarda. O FSP e a geografia da manifestação foram os momentos fundadores da autonomia dos movimentos sociais face às tentativas de manipulação. Foram um ritual de passagem a caminho da maturidade. Nisto residiu o significado político mais profundo do FSP.
Meu Caro Carvalho da Silva, espero que a CGTP faça afinal a avaliação do Fórum e sobretudo da sua actuação na Assembleia e na manifestação e que dessa avaliação saia a disponibilidade para participar leal e democraticamente na organização do segundo Fórum. Se tal suceder, como anseio, a CGTP será imprescindível para o seu êxito. Entretanto, quero que continue a contar com a minha disponibilidade para colaborar com a CGTP em tudo o que contribua para o fortalecimento de um movimento sindical autónomo e democrático.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos