Parafraseando o Manifesto Comunista, pode dizer-se que um novo espectro avassala o mundo. É o neoconservadorismo. Distingue-se do conservadorismo do séc. XIX porque a radicalidade das suas propostas é incompatível com o status quo. Tem a sua origem nos EUA e vai colhendo adeptos em círculos cada vez mais amplos da opinião pública de vários países da Europa e de outros continentes onde quer que os laços políticos e culturais com os EUA sejam mais intensos. Se não domina já o comentário político nos media portugueses, está bem próximo disso. Como qualquer outra ideologia política radical, o seu ideário prima pela simplicidade e, de facto, pela recusa hostil da complexidade, da ponderação equilibrada entre interesses contrapostos ou da possibilidade de diálogo entre perspectivas diferentes. Sendo uma ideologia transnacional, os seus princípios, além de simples, são vagos, de modo a poderem adaptar-se às necessidades e às agenda de cada país. Assim, dadas as diferenças entre Portugal e os EUA, os neoconservadores portugueses distinguem-se dos norte-americanos apenas na exacta medida do que é necessário para, nas nossas condições, serem tão genuinamente neoconservadores quanto eles.
Os inspiradores do movimento neoconservador norte-americano vieram da extrema esquerda, do movimento trotskista dos anos trinta e quarenta, tornaram-se ferozmente anticomunistas nas três décadas seguintes, construíram o seu ideário político nos anos oitenta e noventa e chegaram ao poder com George W. Bush. Herdaram das suas origens o gosto pela radicalidade e pelo politicamente incorrecto, e, na designação usada por um dos neoconservadores, Dinesh D'Souza, pela "guerrilha social". Eis, em linhas gerais, o ideário. A "América" é um país excepcional pela sua origem e pelo seu destino. Porque é moralmente superior aos outros países, o patriotismo e o nacionalismo são valores não só intrinsecamente bons na "América" como necessários ao resto do mundo. O que é bom para a "América" é bom para o mundo. A proposição inversa é absurda. Essa superioridade moral está constantemente ameaçada por inimigos internos e externos e, como bem supremo que é, deve ser defendida por todos os meios, pois que, por definição, neste caso, os fins justificam os meios. Compete ao intelectual neoconservador justificar a posteriori a clareza moral dos resultados, quaisquer que tenham sido os caminhos para chegar a eles. A coerência é sempre o começo da rendição.
Os inimigos externos ou querem destruir a "América", e devem ser esmagados pelas armas, ou querem rivalizar com a sua superioridade moral e devem ser divididos. É o caso da Europa. É imperiosa a divisão da Europa e, de preferência, feita pelos próprios europeus. A soberania nacional dos EUA é de natureza global e por isso não reconhece outras senão na medida em que a servem. Quanto aos inimigos internos, eles residem acima de tudo na própria natureza humana, que é fraca, sujeita à tentação do mal. O mal colectivo é sempre pior que o mal individual. O mal colectivo teve a sua incarnação moderna no Estado e, por isso, a luta contra ele é luta democrática por excelência, uma luta de múltiplas frentes: guerra ao contrato social, às políticas sociais e às concepções de democracia que os defendem; privatizações; o mercado como critério de eficácia e de sociabilidade; descentralização; estigmatização dos pobres como moralmente indignos. Por sua vez, o mal individual combate-se mantendo as populações em constante estado de alerta ante as ameaças que lhes são feitas e os riscos que correm. A união constroi-se, antes de tudo, sobre a ansiedade colectiva. Por isso, a visão apocalíptica do mundo é, no fundo, a única realista e eficaz.