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07-08-2003        Visão
O flagelo do Verão voltou em força. É assim desde há quase trinta anos. O "verão quente" de 1975 ficou na nossa história contemporânea por ter sido um período de grande radicalização da vida política que incluiu vários atentados à vida e à propriedade. Do que pouca gente se lembrará é que foi um verão igualmente quente pelos incêndios que então assolaram o país, e que o padrão da sua ocorrência tornou claro que a grande maioria era de origem criminosa. Foram muitas as denúncias públicas, numa comunicação social a celebrar pouco mais de um ano de liberdade, e foram muitas as ameaças aos autores das denúncias, a revelar que os interesses económicos por detrás dos incêndios eram fortes e estavam organizados. Muitos factores militavam então contra uma eficaz repressão criminal: a instabilidade política e social; a desorganização da nossa polícia de investigação; o facto de este tipo de criminalidade económica, além de ser novo e exigir técnicos de investigação para o qual os polícias não estavam treinados, ocorrer no verão, com parte da força policial de férias, e flagelar populações camponesas com pouco peso social e político.
Nos últimos vinte e oito anos o quadro criminal repetiu-se, com algumas oscilações, e complexificou-se. Desde o início, puderam verificar-se dois interesses económicos na devastação da nossa riqueza florestal. O primeiro, mais importante, ligado à indústria da madeira florestal, esteve ligado à conversão rápida da floresta camponesa (o que envolvia a eucaliptização maciça) e à sobrexploração dos camponeses (comprando ao desbarato madeira queimada depois vendida ao preço quase normal). O segundo interesse aflorou nalgumas áreas suburbanas, onde a indústria imobiliária chocava com as exigências do ordenamento do território ou a protecção de parques naturais. Nos últimos dez anos, um terceiro interesse assumiu relevância: o da indústria de produtos e serviços de combate aos incêndios.
Muitos dos factores, que no início determinaram a ineficácia da justiça criminal, foram entretanto superados, pelo que é verdadeiramente intrigante a impunidade com que ano após ano os criminosos florestais actuam entre nós. Mais grave ainda é a passividade (a causa mais funda de morosidade) da nossa justiça criminal quando a polícia judiciária consegue identificar alguns dos suspeitos, como aconteceu no ano passado. Por razões sobejamente conhecidas, a justiça portuguesa é hoje alvo de forte contestação social e política. Sempre me tenho oposto à demonização das nossas magistraturas judiciais por estar certo de que as boas razões para a contestação de que são alvo se misturam frequentemente com más razões, já que é sabido que nem todos os que criticam a justiça estão interessados em que ela seja mais eficaz e mais justa. Mas a separação entre as boas e as más razões depende apenas dos nossos magistrados e da nossa polícia de investigação: através de um desempenho que, ao dar resposta às boas razões, exponha publicamente os interesses por detrás das más razões. Perante infractores poderosos a nossa justiça tem tido, em geral, um desempenho medíocre. Na luta contra a corrupção tem sido um quase-desastre. Na luta contra a pedofilia a sua eficácia e a sua justeza são uma questão em aberto. Na luta contra o crime florestal organizado o desastre é mesmo total. Um desempenho exemplar nesta área neste momento contribuiria imenso para reabilitar a justiça ante os olhos dos portugueses.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos