Centro de Estudos Sociais
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21-08-2003        Visão
Acabo de regressar de uma visita a Angola onde não ia há 23 anos. Em 1980, os cooperantes cubanos, que na altura dominavam a universidade, não acharam conveniente que eu falasse aos estudantes. Em compensação, passei um tempo maravilhoso em cavaqueira amena com o Manuel Rui, um grande escritor angolano e meu amigo. Os tempos mudaram. Desta vez, fui a convite da Faculdade de Direito para lançar um projecto de investigação e proferir palestras sobre "a globalização, o Estado nacional e o direito" e "o desafio da democracia e o desenvolvimento democraticamente sustentável", esta última em co-patrocínio do Instituto Superior de Ciências da Educação e da ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural de Angola). Há muito tempo que não tinha o privilégio de falar para um auditório de jovens tão ávidos de conhecimentos e tão instigantes nos seus questionamentos.
A primeira impressão que se tem hoje em Luanda - onde, em consequência da guerra, vive cerca de um terço da população do país - é de que o país está ainda a saborear a paz que agora se acredita que seja duradoura. O país está há quarenta anos em guerra e são agora mais evidentes do que nunca as imensas potencialidades deste país antes reprimidas pela violência. E é desta evidência que surge a segunda impressão: os enormes desafios que se põem ao Estado e à sociedade angolanos neste momento de viragem. Identifico quatro desafios principais. O primeiro desafio é o desafio da desigualdade social. Angola é um país riquíssimo e a esmagadora maioria do seu povo vive na miséria. A guerra serviu até agora para encobrir que nas desigualdades reside uma das mais persistentes continuidades entre a Angola colonial e a Angola pós-colonial. Aliás, embora as comparações sejam difíceis, a situação é hoje, neste domínio, mais grave que no tempo colonial. O segundo desafio é o da construção de um Estado democrático, eficiente e íntegro. Também aqui é pesada a herança do Estado colonial mas ela está longe de explicar tudo. Este desafio defronta dois grandes obstáculos. O primeiro é o da corrupção, ou seja, da privatização do Estado por parte da elite no poder. As histórias que correm em Luanda sobre negociatas fabulosas, envolvendo líderes políticos e seus familiares, são deveras preocupantes tanto mais que o sistema judicial assiste passivo ao que se passa. O segundo obstáculo é o da difícil interiorização da mentalidade democrática por parte das forças políticas que conduzem a transição democrática. O partido único não deixa de o ser pelo mero facto de reconhecer a existência de outros partidos e de aceitar a disputa eleitoral.
O terceiro desafio é o da construção de um modelo político social e cultural genuinamente angolano, um modelo que assuma o legado cultural do país (muito dele preexistente ao colonialismo) e o faça de maneira não tradicionalista, ou seja, em nome de uma racionalidade mais ampla que a ocidental e de uma modernidade menos imperial e mais multicultural do que a imposta pelo colonialismo e pela globalização neoliberal. Finalmente, o quarto desafio é o desafio da reconciliação nacional. As tarefas de reconciliação nacional são particularmente exigentes em Angola porque não respeitam exclusivamente à reconciliação entre os inimigos da guerra civil. Diz também respeito ao fraccionismo que quase desde a sua fundação caracterizou o MPLA, desde a revolta activa e a revolta de leste de 1972 à facção Chipenda de 1974-75 e à revolta de 27 de Maio de 1977. Só nesta última terão morrido 60000 pessoas no seguimento do veredicto de Agostinho Neto: "não perdoamos". Para sarar estas feridas, Angola deverá ter a coragem de constituir uma Comissão de Verdade e de Reconciliação.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos