O Brasil atravessa um período tão exaltante quanto intrigante. A discussão política está nas ruas e nas famílias e ocupa as conversas e a intervenção pública dos intelectuais. O caso destes últimos é especialmente significativo, uma vez que não é frequente vê-los apaixonadamente envolvidos em debates políticos e muito menos em períodos de normalidade democrática. De facto, não encontro precedente para tal envolvimento senão no período que antecedeu a Revolução Russa, sobretudo entre Fevereiro e Outubro de 1917, quando se discutia acaloradamente o âmbito e a direcção das reformas a haver. Não estamos hoje, como acontecia então, perante uma mudança de regime, mas estamos perante um facto talvez ainda mais importante, tendo em conta a história do Brasil: é a primeira vez que as oligarquias, que sempre governaram o país, cedem, por via eleitoral, a governação (e, em parte, o poder) aos representantes das classes populares, bem simbolizados na figura de um presidente que passou fome e só "comeu pão francês aos oito anos".
Em debate tão polarizado é possível distinguir três posições. A posição dos que estão tão desiludidos com as continuidades em relação ao governo anterior que deixaram de ter esperança em que o governo cumpra alguma das suas promessas eleitorais; a posição dos que se recusam a criticar o governo dada a péssima situação herdada do governo anterior e o pouco tempo de governo que ainda tem; finalmente, a posição dos que, apesar de críticos do andamento da governação, lhe dão o benefício da dúvida e acreditam que as mudanças começarão a ser visíveis nos próximos meses. Como o governo está em funções há meio ano, as diferentes posições apoiam-se sobretudo em sinais, pelo que têm uma forte dose de subjectividade. É ela que confere interesse e paixão ao debate.
Acompanhando há muito a política brasileira, sinto-me identificado com a terceira posição e baseio-me para isso em vários sinais dos quais o mais convincente é o sentido da diplomacia brasileira. Uma das características mais intrigantes do governo Lula é a forte discrepância entre a submissão dócil e até com excesso de zelo à ortodoxia financeira do FMI, no plano interno, e uma posição cada vez mais crítica de tal ortodoxia, no plano internacional. Nas suas intervenções sobre política internacional, Lula tem vindo a endurecer o seu discurso contra a injustiça social global e a hipocrisia dos países ricos, ao imporem aos países pobres a abertura dos mercados, ao mesmo tempo que mantêm as suas economias fortemente protegidas e subsidiadas. E não se trata apenas de um discurso. Na reunião da OMC que acaba de se realizar em Cancun, o Brasil liderou o grupo dos 20, um conjunto de grandes países de desenvolvimento intermédio apostado em bloquear qualquer avanço na liberalização do comércio enquanto os EUA e a UE não eliminarem os subsídios à agricultura.
Em meu entender, esta discrepância entre política interna e política internacional é uma estratégia destinada a dar credibilidade e campo de manobra ao Brasil para propor as alterações nas regras do jogo que lhe permitam iniciar uma política de desenvolvimento socialmente responsável. Um país que cumpre as regras, ainda que injustas, tem mais credibilidade para propor a sua alteração. Apesar de grande, o Brasil é demasiado pequeno para, sozinho, conseguir tal alteração. Daí a nova solidariedade Sul-Sul. Para mim, é este o melhor sinal de como a esperança pode vencer o medo.