Edward Said não era muito conhecido entre nós. De origem palestiniana, professor de literatura comparada na Universidade de Columbia e o intelectual mais destacado na defesa da causa palestiniana, morreu aos 67 anos em Nova Iorque, no passado dia 24 de Setembro, vítima de leucemia. A importância de Said decorre de uma combinação única entre perfil, obra e causa. Said era um intelectual público, uma categoria de intelectual em extinção. O intelectual público é o profissional das ciências ou das artes que intervém fora do campo profissional, no espaço público, com o objectivo de defender ideias, valores, causas em que se revê como cidadão, consciente de que em tal defesa participam vários conhecimentos para além daquele de que ele é um profissional especializado. O intelectual público é um alvo fácil de críticas, quer por parte dos seus adversários políticos, quer por parte daqueles (às vezes, os seus melhores discípulos) para quem o intelectual se deve confinar ao campo intelectual, deixando a política aos profissionais da política. Pierre Bourdieu, outro notável intelectual público, também recentemente falecido, ilustra bem o que acabo de dizer. No caso de Edward Said, os ataques vieram dos conservadores norte-americanos, do lobby israelita e dos fundamentalistas islâmicos. Em 1999, a revista conservadora Commentary chamava-lhe "o professor do terror". Porquê? Na resposta fundem-se a obra a causa.
Crítico literário e musical e sociólogo da cultura, Said é sobretudo conhecido pelo seu livro Orientalism, publicado em 1978. Influenciado por Foucault, Fanon e Levi-Strauss, Said defende que há uma relação profunda entre cultura e poder, de tal maneira que as representações culturais entre grupos sociais ou entre países reflectem as relações de poder que há entre eles. Quanto mais desigual é essa relação mais enviesada é a representação do mais poderoso a respeito do menos poderoso. Foi assim, segundo ele, que se criou no Ocidente a imagem dos orientais, e nomeadamente dos árabes, como sensuais, corruptos, preguiçosos, atrasados, violentos, em suma, perigosos. Nos dois últimos séculos esta imagem legitimou o poder do Ocidente sobre o Oriente, sobreviveu ao fim do colonialismo e continua hoje a ser o fundamento da política internacional sempre que estão em causa estas duas regiões geopolíticas e geoculturais. O exemplo mais dramático da sua vigência é o tratamento internacional do conflito israelo-palestiniano, a causa de Said.
Nas últimas três décadas, Said foi o mais lúcido defensor das legítimas aspirações do povo palestiniano a viver em paz e com independência na sua terra, ao mesmo tempo que defendia o mesmo direito para os judeus. Isso lhe valeu a hostilidade dos fundamentalistas de ambos os lados. Sempre se manifestou contra o terrorismo mas nunca deixou de afirmar que o terrorismo dos fortes, do Estado de Israel, era muito mais ignominioso que o terrorismo dos fracos, dos bombistas suicidas. Revoltava-se, como muitos de nós, contra a renda do Holocausto de que o Estado colonialista de Israel continua a usufruir no Ocidente para poder perpetrar os seus crimes contra populações civis inocentes e beneficiar da isenção de condenações e sanções que foram aplicadas a outros governos repressivos, como foi o caso da África do Sul. Morreu atormentado pelo muro da vergonha que vai separar famílias, campos de culturas e até universidades, como é o caso da universidade Al Quds. Talvez sem o saber, o presidente desta universidade ilustrou bem a tese do orientalismo ao afirmar: "vamos ficar divididos em jaulas e o único movimento permitido será entre jaulas, tal como no jardim zoológico".