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16-10-2003        Visão
Escrevo esta crónica no final da marcha pela paz que trouxe cem mil pessoas de muitos países, na grande maioria jovens italianos, de Perugia à Cidade de Assis, a cidade da paz. Com esta marcha concluiu-se a 5ª Assembleia das Nações Unidas dos Povos, uma assembleia que se realiza desde 1995 por iniciativa da Tavola della Pace (Mesa da Paz), uma vasta coligação de 500 organizações não governamentais e movimentos sociais e de 350 municípios italianos que lutam pela paz e pelos direitos humanos dos povos. A ideia da criação da Tavola della Pace merece ser referida uma vez que tem hoje uma grande actualidade. Surgiu da necessidade, sentida por activistas dos direitos humanos italianos, de reflectir sobre a reforma das Nações Unidas e de preparar propostas concretas nesse sentido a apresentar por ocasião das celebrações dos cinquenta anos da ONU. O Secretário-Geral da ONU era, nessa altura, Boutros Boutros-Ghali, um diplomata apostado, ele próprio, na reforma das Nações Unidas, tendo produzido dois documentos importantes nesse sentido (Agenda para a Paz e Agenda para a Democratização). Em parte por isso, os Estados Unidos da América retiraram a confiança ao Secretário-Geral e impediram que o seu mandato fosse renovado, ao contrário do que era habitual. Procuraram um outro Secretário-Geral que servisse os seus interesses, Kofi Annan.
Perdido o ímpeto da reforma da ONU, a partir da ONU, a Tavola della Pace tomou a seu cargo alimentar essa aspiração, realizando desde então a Assembleia das Nações Unidas dos Povos. Para além de uma vastíssima presença de organizações italianas, a Assembleia inclui representantes de movimentos pela paz e pela democracia dos quatro cantos do mundo e outros convidados internacionais. Este ano estavam presentes 210 convidados de 90 países. Tive o gosto de partilhar com o Dr. Mário Soares a presença portuguesa.
Cada ano a Assembleia tem um tema central. O deste ano foi o papel e a responsabilidade da Europa no mundo. O tema não podia ser mais oportuno. Depois do desnorte da Europa no que respeita à invasão do Iraque, depois dos milhões de Europeus que em 15 de Fevereiro vieram para a rua manifestar-se pela paz em comunhão com muitos outros milhões em todo o mundo, depois da vergonhosa posição adoptada pela Europa na recente reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancun, depois de os neoconservadores norteamericanos revelarem os seus planos para dividir a Europa e fazer dos países em vias de entrar na UE um autêntico território de caça, depois de tudo isto era urgente que os cidadãos reflectissem sobre a questão crucial das responsabilidades globais da Europa. As conclusões foram perturbadoras. No preciso momento em que a fúria unilateralista e a agressividade ensandecida dos EUA abrem o espaço geopolítico para uma alternativa, a Europa, que estaria em condições em ser parte importante dessa alternativa, está num impasse, desprovida de política externa, paralisada por um processo constitucional antidemocrático, presa fácil dos interesses económicos norteamericanos com um acesso privilegiado aos comissários relevantes. O que se passou em Cancun foi uma vergonha para a Europa oficial e uma tragédia para as aspirações de solidariedade global dos cidadãos europeus. Os mesmos países europeus que granjearam as simpatias do mundo menos desenvolvido, ao oporem-se à guerra no Iraque, deram as mãos aos EUA, recusando-se a discutir os subsídios à agricultura e a abrir os seus mercados aos produtos dos países asfixiados pelas políticas do FMI ao serviço dos credores europeus. Nem sequer os moveu saber que uma vaca europeia consome diariamente mais fundos públicos que o rendimento diário à disposição de cada um dos muitos milhões de habitantes do terço mais pobre da humanidade. Tão pouco os moveu saber que, enquanto um refugiado africano "vale" 17 cêntimos de um dólar, um refugiado europeu do Kosovo "vale" quase 2 dólares. Esta hipocrisia impede a UE de emergir como protagonista de uma nova ordem social e económica mundial mais justa e mais solidária, respeitadora do direito internacional e promotora da resolução pacífica dos conflitos.
Os cidadãos do mundo e sobretudo os cidadãos europeus reunidos em Perugia concluíram que o potencial europeu para a construção de uma alternativa ao unilateralismo agressivo só poderá concretizar-se pela pressão organizada, pacífica e permanente da sociedade civil europeia, dos partidos progressistas e dos movimentos sociais inconformados com a ignara arrogância de tantos dos nossos governantes. O anúncio, durante a Assembleia, da atribuição do Prémio Nobel da Paz a uma activista quase anónima da luta pelos direitos humanos foi um tónico que inundou a alma e a vontade de todos os presentes.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos