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11-12-2003        Visão
O que leva a considerar em crise, num dado momento histórico, certas instituições tem menos a ver com o desempenho do que com o grau de coerência delas com o modelo civilizatório dominante. Depois de vários séculos de domínio económico e político, o capitalismo global conseguiu nos últimos trinta anos consolidar o domínio cultural e, ao fazê-lo, construiu um novo modelo civilizatório assente na absoluta primazia do mercado e na extensão da sua lógica a todos os aspectos da vida social. À luz deste modelo, tudo o que é público está, quase por definição, em crise. A crise da universidade pública não decorre, pois, de um problema de financiamento. Apesar do seu corporativismo e burocratismo, a universidade foi desde sempre uma instituição cultural dominada por uma forma de competição alternativa à do mercado, a competição pela excelência e pelo mérito, sendo a eventual tradução do mérito em valor mercantil um processo exterior à universidade.
No momento em que o capitalismo global conquista o domínio cultural, a competição pelo mérito só faz sentido enquanto competição pelo mercado e, para isso, é preciso transformar o mérito em mercado do mérito, não apenas fora, mas também dentro da universidade. E para funcionar o mercado do mérito é preciso que o mérito se redefina pelo seu valor mercantil.
A resistência da universidade pública a esta transformação explica que ela esteja em crise não só no nosso país como no mundo inteiro. Em face disto, as forças sociais e políticas interessadas em transformar esta resistência, de sinal de crise, em estratégia de saída da crise, têm de tomar consciência que não irão muito longe se mantiverem a luta no plano do sim ou não às propinas. Terão de procurar o elo fraco deste modelo civilizatório, algo que ele tenha dificuldade em deslegitimar mesmo quando lhe é contrário. Em meu entender, esse elo fraco é a democracia participativa.
Daí a minha proposta para o caso de ser politicamente inviável a gratuitidade do ensino publico: uma vez garantida a igualdade de acesso, o pagamento das propinas deve ser um exercício de democracia participativa que permita à universidade reorientar estrategicamente o seu futuro, decidindo democraticamente o grau de consonância ou dissonância que pretende em relação ao modelo civilizatório dominante.
A proposta consiste no seguinte. As universidades devem reorganizar a sua contabilidade de modo a tornar transparente e clara a distinção entre despesas correntes e despesas de investimento. O Estado assegura a totalidade das despesas correntes e parte das de investimento; as propinas, que serão consideradas contribuições da sociedade e não dos estudantes, destinar-se-ão a complementar as despesas de investimento.
No primeiro ano em que for adoptada a utilização participativa das propinas, uma assembleia universitária constituinte decidirá sobre o método a seguir. Proponho um método com o seguinte perfil. Haverá três assembleias interfacultárias, uma por cada corpo (docente, estudantes e funcionários). Cada assembleia deve incluir entre duas e três faculdades. As assembleias terão dois objectivos: 1) discutir a definir as grandes áreas de investimento e o grau de prioridades de cada uma; 2) eleger os delegados (1 delegado por x número de participantes) ao Conselho das Propinas (CP). Ao CP compete: 1) harmonizar as propostas vindas das assembleias; 2) hierarquizar as áreas de investimento e definir o montante financeiro disponível para cada área. Nas votações do CP haverá uma ponderação do peso do voto dos delegados dos diferentes corpos. As decisões do CP serão explicadas em assembleias de faculdades abertas a todos os corpos. Tornadas públicas as áreas, as hierarquias e os montantes, será dado um prazo para a apresentação de projectos. Estes podem ser apresentados por qualquer grupo de docentes, estudantes e funcionários, pelas faculdades, centros de investigação, Reitoria e seus serviços centrais.
O CP nomeará uma comissão de peritos para avaliar os projectos. Os projectos científicos serão avaliados por uma comissão constituída exclusivamente por docentes e investigadores. Todos os outros projectos serão avaliados por comissões com representantes dos três corpos. Em qualquer caso, os membros das comissões serão recrutados noutras universidades portuguesas ou estrangeiras. Feita a avaliação, compete ao CP decidir o montante a atribuir a cada projecto aprovado, tendo em conta o mérito do projecto e o grau de prioridade da área de investimento em que se integra. Os resultados serão amplamente difundidos. O CP nomeará uma comissão de acompanhamento encarregada de monitorar a realização dos projectos aprovados, que apresentará um relatório a ser discutido no CP e nas assembleias interfacultárias do ano seguinte.
Um método com este perfil garantirá a transparência na utilização das propinas, mobilizará a universidade, e fará dela um testemunho da única alternativa à lógica do mercado: a democracia participativa.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos