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15-01-2004        Visão
Os processos judiciais mediáticos confrontam-nos com um dilema: todos os comentadores, analistas e políticos responsáveis estão de acordo em que a justiça deve ser feita nos tribunais e não nos media, mas todos usam estes últimos para o afirmar. Um dilema a que eu, obviamente, não escapo. Já que é assim, o proveito da atenção dada pelos media a este tipo de casos reside na possibilidade de levar a um público mais amplo as análises da justiça que normalmente ficam confinadas aos operadores e aos estudiosos do sistema judicial.
O processo Casa Pia integra-se naquilo que designo por justiça dramática. Trata-se de casos em que a natureza dos crimes e a notoriedade dos presumíveis criminosos fazem com que sobre eles incida a atenção dos meios de comunicação social. Ainda que esta visibilidade pública cubra uma fracção infinitesimal do trabalho judiciário, é suficientemente recorrente para não parecer excepcional e mesmo para parecer corresponder a um novo padrão de intervencionismo judiciário. Os casos de justiça dramática transformam-se rapidamente em símbolos de justiça ou de injustiça, e o seu desenrolar e desfecho, em prova pública do bom ou mau desempenho do sistema judicial. Estes casos ocultam todo o trabalho judicial que extravasa deles, inclusive o que respeita a outros casos de justiça dramática. É da natureza destes casos não partilhar a ribalta. Foi, por isso, que o caso da Universidade Moderna desapareceu dos media no momento em que surgiu o caso Casa Pia. Tais factos bastariam para justificar a análise serena e detalhada destes casos. Mas duas outras razões podem ser aduzidas, ambas respeitantes aos estereótipos sociais sobre o que é crime e quem é criminoso. A primeira é que os casos de justiça dramática referem-se em geral a crimes (corrupção, crime organizado, pedofilia) muito diferentes daqueles que constituem a rotina do controle social e presidem à formação e ao preparo técnico dos investigadores (crime contra a vida, furto e roubo). A segunda é que os presumíveis criminosos são indivíduos ou organizações com muito poder social e político que, para além de fugirem ao estereótipo do criminoso, têm poder suficiente para virar o público contra o sistema judicial e para criar divisões profundas no seio deste.
A justiça dramática levanta assim dois problemas: a vontade política para investigar, acusar e julgar, e o preparo técnico para o fazer eficazmente. No caso Casa Pia está neste momento em causa a qualidade da investigação e da acusação. Estas, para serem de boa qualidade, têm de saber armar-se contra uma defesa que se adivinha forte. Têm que saber blindar o processo contra erros grosseiros de investigação e contra questões de ordem formal, obrigando a defesa a centrar as suas forças na discussão do mérito da causa (o réu cometeu ou não o crime?) e não nos formalismos processuais (foram ou não cumpridas todas as regras do processo?). Aliás, disto também beneficia a própria defesa, pois que, nestes casos, o réu absolvido por razões processuais é sempre um réu meio condenado perante a opinião pública.
O Estatuto do Ministério Público permite a constituição de equipas especiais para garantir a qualidade da investigação e da acusação em casos que particularmente o justifiquem. Foi o que se fez, por exemplo, no caso das FP25. Nessa altura, o MP constituiu uma forte equipa de magistrados, que chegou a ser apelidada, nos meios forenses, de "equipa imbatível", que imprimiu uma grande dinâmica e coesão a toda a actividade de investigação. O resultado foi um total sigilo e uma investigação célere e eficaz. Em breve saberemos se o caso Casa Pia é revelador da mesma vontade política e do mesmo preparo técnico que caracterizaram a investigação e a acusação no caso FP25.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos