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29-01-2004        Visão
A quarta edição do Fórum Social Mundial (FSM), que se realizou em Mumbai (Índia) de 16 a 21 de Janeiro, constituiu um passo muito significativo na consolidação do processo FSM. As três primeiras edições tinham-se realizado em Porto Alegre com escassa presença de delegados africanos e asiáticos, o que tinha levado muitos a pensar que o FSM, apesar de pretensamente mundial, era, de facto, uma iniciativa latino-americana e europeia. O êxito do FSM de Mumbai significou que o espírito de Porto Alegre - a crença de que um mundo mais justo e mais solidário é possível e a vontade política de lutar por ele - constitui uma aspiração universal. Pôde ser recriado na Ásia e não há nenhuma razão para pensar que o não possa ser em África ou noutras partes do mundo. Aliás, está já decidido que o FSM posterior ao de 2005 - desde o ano passado marcado para Porto Alegre - será realizado em África, em 2006 ou 2007, consoante o FSM continue a realizar-se anualmente ou passe a ser bianual, uma decisão que será tomada na próxima reunião do Conselho Internacional do FSM em Abril próximo.
O FSM de Mumbai mostrou ainda que o espírito de Porto Alegre, sendo uma aspiração universal, adquire tonalidades próprias em diferentes regiões do mundo. A sua universalidade decorre do próprio âmbito da globalização neoliberal, ao submeter todas as regiões do mundo ao mesmo modelo económico e às suas consequências: o aprofundamento das desigualdades sociais, a desmoralização do Estado e a destruição do meio ambiente. Neste sentido, a escolha de Mumbai para a realização do Fórum não podia ter sido mais acertada. Com cerca de 15 milhões de habitantes, Mumbai é o símbolo vivo das contradições do capitalismo contemporâneo. Importante centro financeiro e tecnológico e sede da pujante indústria cinematográfica da Índia - a Bollywood, que produz mais de 200 filmes por ano para um público cada vez mais global - Mumbai é uma cidade de pobreza certamente chocante aos olhos ocidentais. Mais de metade da população vive em bairros da lata (cerca de dois milhões, na rua), enquanto 73% das famílias, em geral, numerosas, vivem em habitações de uma só divisão. O crescimento recente da economia informal faz com que 2% da população total sejam vendedores ambulantes. Mas na Índia a luta contra este pano de fundo de desigualdade adquire cambiantes específicos e esses imprimiram a marca a este Fórum. Primeiro, às desigualdades económicas, sexuais e étnicas somam-se aqui as desigualdades das castas que, apesar de constitucionalmente abolidas, continuam a ser um factor decisivo de discriminação. Os dalits, uma das castas inferiores, anteriormente designados por "intocáveis", tiveram uma presença muito forte no Fórum. Dos 100.000 participantes mais de 20.000 foram dalits que viram no Fórum uma oportunidade única de denunciar ao mundo a discriminação de que são vítimas. Segundo, o factor religião, que no Ocidente tende a ter menos peso em razão da secularização do poder, é no Oriente um factor social e político de primeira ordem. O fundamentalismo religioso - que avassala toda a região, e a própria Índia com a crescente politização do hinduísmo - foi um tema central de debate, bem como o papel da espiritualidade nas lutas sociais por um mundo melhor. Terceiro, tendo lugar na Ásia, o Fórum não podia deixar de dar uma particular atenção à luta pela paz, não só porque é na Ásia ocidental, do Iraque ao Afeganistão, que a agressão belicista dos EUA mais se faz sentir, como também porque a Ásia do Sul (Índia e Paquistão) é hoje uma região fortemente nuclearizada. Neste espírito, a Assembleia dos Movimentos Sociais convocou para o dia 20 de Março, primeiro aniversário da invasão do Iraque, uma manifestação mundial contra a Guerra. Quarto, no FSM de Mumbai a concepção ocidental de luta ecológica foi postergada em favor de concepções mais amplas que incluem a luta pela soberania alimentar, pela terra e pela água, pela preservação da biodiversidade e dos recursos naturais e pela defesa das florestas contra a agro-indústria e a extracção de madeiras.
Pelo seu próprio êxito, o FSM de Mumbai cria novos desafios ao processo do FSM. Identifico três principais. O primeiro é o da expansão do Fórum. Não se trata apenas da expansão geográfica mas também da expansão temática e de perspectivas. Neste sentido, será cada vez mais incentivada a realização de fóruns locais, nacionais, regionais e temáticos de modo a aprofundar a sintonia do "Consenso de Porto Alegre" com as lutas que mobilizam os grupos sociais. Segundo, o FSM tem vindo a acumular um impressionante conjunto de conhecimentos sobre as organizações e os movimentos que o integram, sobre o mundo em que vivemos e as propostas que vão sendo apresentadas e postas em prática para o transformar. Este acervo tem de ser avaliado cuidadosamente para potenciar a sua utilidade, tornar o Fórum mais transparente para si próprio e permitir a todos uma oportunidade única de auto-aprendizagem. Daí que se tenha discutido mais que antes a relação entre as ciências sociais e os conhecimentos populares. Terceiro, à medida que se acumula o conhecimento e se identificam as grandes áreas de convergência, cresce a necessidade de se desenvolverem planos de acção colectiva. Não se trata apenas de aumentar a eficácia do FSM - já que esta não se mede tanto por acções globais, como por acções locais e nacionais - mas sobretudo de preparar respostas às tentativas por parte do Banco Mundial, do FMI e do Fórum Económico de Davos de se apropriarem das agendas do FSM e as descaracterizarem em favor de soluções que não belisquem a desordem económica em curso. Dada a sua natureza de espaço aberto, o FSM não assumirá propostas em nome próprio mas facilitará a articulação entre as redes que o constituem no sentido de aprofundar os planos de acção colectiva e de os levar à prática.
Depois de Mumbai, o FSM é cada vez mais um processo que irá dando notícias cada vez mais desestabilizadoras para aqueles que, cinicamente instalados nos dividendos da injustiça social, pensam que o mundo nunca mais deixará de girar em seu favor.


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Boaventura de Sousa Santos