Centro de Estudos Sociais
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11-03-2004        Visão
Escrevo de Quito, no Equador, onde acabo de participar no 35º Congresso da Federação Internacional das Organizações de Direitos Humanos (FIDH). A escolha de Quito para a realização do congresso é, em si mesma, um comentário eloquente à situação dos direitos humanos no Continente Americano. O Congresso deveria realizar-se na Colômbia mas o governo colombiano recusou-se a garantir a segurança dos participantes no Congresso. Solidariamente, as organizações de direitos humanos do Equador disponibilizaram-se para o organizar. Fizeram-no com a consciência de que a situação dos direitos humanos no Equador, sem atingir a dramaticidade da da Colômbia, é cada vez mais preocupante. Os acontecimentos que rodearam o Congresso são bem prova disso. Faço investigação há anos na Colômbia e de cada vez que visito este país fico com a sensação de que a situação, de tão grave, não pode piorar. E, contudo, tem sempre vindo a piorar. O odioso "Plan Colombia" gizado pelos EUA para controlar militarmente a América do Sul, a partir da Colômbia, sob o pretexto da luta contra o narcotráfico, está a transformar a região num barril de pólvora pronto a explodir logo que os desígnios imperiais dos EUA se derem por cumpridos no Médio Oriente e as atenções se virarem para os vizinhos do Sul. A guerra "de baixa intensidade" que se trava nesta região é simultaneamente militar e económica, e o seu objectivo último é controlar o acesso aos cada vez mais preciosos recursos naturais da região: o petróleo, os minérios e, sobretudo, a biodiversidade. Os povos indígenas, que habitam boa parte das regiões onde estão esses recursos, transformaram-se na última década numa importante força política, que reivindica o controle da riqueza dos seus territórios e avança propostas autónomas e alternativas às das empresas extractivas. Não admira, pois, que se tenham transformado num dos alvos principais da cobiça imperial. No plano militar, as operações centram-se na fumigação dos cultivos de coca. É uma guerra química, que destrói indiscriminadamente a agricultura de subsistência dos camponeses, com um impacto ambiental devastador. Para além da contaminação dos cursos de água, causa danos irreversíveis na saúde, sobretudo das crianças, e obriga à deslocação forçada de milhares de pessoas. No plano económico, a guerra consiste na pressão para a celebração de tratados de livre comércio que, na prática, colocam os territórios indígenas à mercê das empresas multinacionais. A pressão militar e a pressão económica vão de par e não são exercidas exclusivamente pelos EUA: por exemplo, a cooperação militar de Inglaterra e de Espanha com a Colômbia centra-se nos territórios onde estão activas as empresas petrolíferas destes países.
O movimento indígena é hoje o grande obstáculo a este projecto imperial, e as consequências estão à vista. Quando na semana passada visitei o Presidente da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, o portão de entrada estava cravado das balas de alto calibre que o tinham tentado assassinar dias antes, quando regressava de uma reunião continental contra a ALCA (a Associação de Livre Comércio das Américas). Nesse mesmo dia, era ameaçada de morte Nina Pacari, uma insigne advogada e uma das mais brilhantes líderes indígenas, que em Maio passado esteve em Coimbra para participar no Colóquio "Direito e Justiça no Século XXI", organizado pelo Centro de Estudos Sociais. Na altura - quando estava em vigor o efémero acordo entre o Governo e o Partido Indígena, Pashakuti - era Ministra dos Negócios Estrangeiros do Equador. Hoje, corre perigo de vida. A realização do Congresso da FIDH em Quito acabou por ser providencial, pois foi possível incluir nas resoluções finais uma denúncia firme desta e de outras violações dos direitos humanos.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos