Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
25-03-2004        Visão
De 10 a 12 de Março realizou-se em Salvador, Bahia, o seminário internacional Cultura e Desenvolvimento, organizado pelo Ministério da Cultura do Brasil. O seminário reuniu mais de 150 artistas, intelectuais, produtores e gestores culturais de quase todos os países de da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Digo quase porque Portugal esteve ausente deste seminário (eu participei a convite do Ministro Gilberto Gil e o Hélder Costa participou porque estava por coincidência no Brasil). O Ministério da Cultura português decidiu não se envolver activamente nesta reunião, fazendo-se representar por uma funcionária de segundo ou terceiro escalão, que cumpriu à risca a missão de que foi incumbida: estar sem estar. Esta decisão causou a maior perplexidade (e, muitas vezes, genuíno desgosto) entre os participantes, que não compreenderam que Portugal se alheasse de uma reunião cujo objectivo expresso era preparar a terceira reunião dos Ministros da Cultura da CPLP, que se realiza no Maputo em Abril. Para mim, ela não é apenas mais uma prova de quanto à deriva está a nossa política cultural. É, além disso, reveladora de equívocos profundos no modo como as elites políticas concebem a identidade do país, equívocos que paralisam o nosso potencial para uma presença criativa na cena internacional. Dois desses equívocos são particularmente patentes.
A importância deste seminário residiu em que pela primeira vez na história apagada da CPLP se procurou passar das palavras aos actos, preparando, em parceria com os agentes culturais, uma agenda comum de políticas públicas que dê substância e propósito à reunião dos responsáveis políticos. O objectivo foi plenamente atingido, traduzido num conjunto impressionante de propostas em áreas tão diversas quanto a educação, a economia da cultura, as linguagens culturais, a memória, os media, a informação e a gestão da cultura. Graças a este trabalho, a reunião do Maputo será certamente diferente das anteriores. Acontece que a ideia da preparação da agenda comum foi do Ministro Gil e aqui reside o primeiro equívoco identitário. É que Portugal, apesar de ser um país de desenvolvimento intermédio, sem condições económicas e políticas para ser o centro real da CPLP, imagina-se como centro - país europeu e ex-potência colonial - que não aceita partilhar a hegemonia com o outro país de desenvolvimento intermédio da comunidade, o Brasil, um país do Terceiro Mundo. É esta a psicologia profunda das ausências incompreensíveis.
O segundo equívoco liga a reunião de Salvador à tragédia de Madrid e reside em supor que a nossa identidade enquanto país europeu exige que descartemos tudo o que na nossa história confere especificidade à nossa existência europeia. É como se tudo o que nos é específico, em vez de potencial, fosse fardo. Este equívoco impede-nos de valorizar uma longa experiência histórica de contactos entre culturas, que nenhum outro país europeu tem, uma história feita de violência colonial, mas também de diálogo e de mestiçagem e, nos melhores momentos, de convivência em respeito mútuo. Findo o colonialismo, essa história é hoje reinventada e protagonizada pelos diferentes países da CPLP. Por exemplo, Moçambique é talvez o país que melhor simboliza as possibilidades de diálogo e convivência com a cultura islâmica. A voz de Portugal na Europa no que respeita à luta contra o terrorismo e ao isolamento do fundamentalismo devia estar marcada por este património cultural único. É por isso que nos choca tão profundamente a arrogância e a virulência com que os comentadores e editorialistas conservadores investem em nome da civilização contra a barbárie, apesar de os factos irem desdizendo tudo o que prevêem e tornarem cada vez mais perigoso tudo o que defendem.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos