Talvez surpreenda os mais novos saber que há trinta anos não havia ciências sociais em Portugal. Para além da economia e do direito, havia apenas práticas dispersas de sociologia, antropologia e ciência política, acarinhadas quando úteis ao Estado Novo (nomeadamente à administração colonial) e clandestinas ou fortemente policiadas quando independentes. Não havia cursos nem projectos de investigação. Acima de tudo, não havia comunidade científica. O atraso científico do país era geral, para o que contribuíam razões económicas (boa parte do orçamento do Estado era drenado para a Guerra Colonial), culturais (a coesão da nação, assente no nacionalismo, na religião e na moral, podia ser posta em causa por uma cultura científica livre e crítica) e institucionais (universidades esclerosadas pela vigilância política e pelo autoritarismo dos professores catedráticos, centradas no ensino - pedagogicamente retrógrado - e hostis à investigação). Mas no caso das ciências sociais, o atraso devia-se ainda a fortes razões político-ideológicas: o célebre dito, atribuído a Salazar, de que sociologia e socialismo são a mesma coisa.
Pertenço com orgulho à geração - boa parte dela formada no estrangeiro - que institucionalizou o ensino, a investigação e a profissionalização das ciências sociais. O que o país avançou cientificamente desde então! O avanço foi geral, nas ciências sociais, nas ciências naturais e nas humanidades. Não foi possível recuperar todo o atraso em relação aos países que nos servem de referência - muitos dos nossos melhores cientistas continuaram a demandar o estrangeiro - mas a distância encurtou-se. A maior parte deste esforço foi feito nas universidades, muitas vezes contra as rotinas e autoritarismos que nelas continuaram a prevalecer. Um impulso notável ocorreu quando em 1995 Mariano Gago assumiu o Ministério da Ciência e Tecnologia: foi, pela primeira vez, reconhecido que a criação da cultura científica no país é um projecto indivisível onde cabem todas as ciências por inteiro; foram aprofundadas formas de avaliação da investigação exigentes e transparentes; foram criadas novas instituições (como, por exemplo, os laboratórios associados).
Desde há dois anos, a comunidade científica portuguesa está em sobressalto com sucessivas notícias (e algumas práticas) que fazem temer que o sistema de ciência e tecnologia, consensualmente criado, em vez de melhorado, seja desmantelado. Primeiro, foram as notícias de que a ciência não podia continuar a ser uma prioridade. Depois, foram os atrasos nos pagamentos aos centros de investigação e a não abertura de concursos. Por último, o novo modelo de financiamento da ciência que acaba de ser anunciado e se encontra em curtíssimo período de discussão pública. Se este fosse adoptado na versão actual, causaria uma perturbação irreparável na comunidade científica e poria fatalmente em causa o esforço das últimas décadas.
Queremos excelência académica e avaliação exigente dos resultados, mas é inaceitável que a avaliação seja quantitativa e não qualitativa e feita segundo critérios que não podem senão conduzir à avaliação negativa de muitos dos cientistas portugueses activos na maioria das disciplinas. Queremos que a nossa investigação seja útil ao país (e à humanidade), mas recusamos que a utilidade seja aferida por critérios estreitos vinculados a políticas científicas que mudam de quatro em quatro anos. Queremos a internacionalização e praticamo-la intensamente, mas não queremos que ela se reduza ao Atlântico Norte, antes inclua também a Ásia, a América Latina e a África. Aí, a internacionalização, além de útil, é também um dever histórico. Esperamos que a determinação dos cientistas portugueses e a capacidade de diálogo dos governantes leve a que o bom senso impere.