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06-05-2004        Visão
Nos últimos trinta anos três mega-acontecimentos romperam com o passado profundo do nosso país: o 25 de Abril, o fim do império colonial e a adesão à União Europeia. Somos hoje uma sociedade muito diferente e muito melhor. No entanto, intrigantemente, continuamos a ser assombrados pelo que chamo o problema do passado. Consiste num conjunto de ideias que explicam as deficiências do presente em função de condições históricas que pela sua longa duração fazem prever dificuldades na superação de tais deficiências no futuro próximo. Alguns exemplos ilustram o fundamento deste problema. Sobre a debilidade da nossa economia: "qual há de nós que traga em si cousa feita em Portugal? Acharemos (e não ainda todos nós) que só o pano de linho e os sapatos são obras nossas" (Duarte Ribeiro de Macedo, 1675). Sobre o modo leviano com que se fazem nomeações para cargos políticos: "Lástima é que para escolher um melão se façam mais provas e diligências da sua bondade que para um conselheiro e para um ministro" (Francisco Manuel de Melo, publicado postumamente em 1721). Sobre a construção de estradas: "Supusemos que todo o progresso económico estava em construir estradas... Não pensámos que as facilidades de viação, se favoreciam a corrente de saída dos produtos indígenas, favoreciam a corrente de entrada de forasteiros, determinando condições de concorrência para que não estávamos preparados e para que não soubemos preparar-nos" (Oliveira Martins, 1881). Sobre as elites políticas: "Não houve da parte de diversos partidos a menor consideração pelos valores mentais, o menor interesse pelos nossos jovens. Por isso, o que há de mais... são e idealista nas aspirações populares dispersa-se por aí, impotente e vago, como simples nebulosa que não toma corpo, que não influi nos factos, que não chega a actuar" (António Sérgio, publicado em 1932).
O nosso problema do passado é real e não tem solução a curto prazo. Para o ir atenuando será necessário um esforço sustentado, ao longo de décadas, e tal só será possível se soubermos inserir no projecto europeu um projecto nacional, assente num novo contrato social que envolva os cidadãos e suas organizações, as instituições do Estado e o sistema político. Os pilares desse contrato são precisamente os três mega-acontecimentos que referi, entendidos agora como motores do desbloqueamento da sociedade portuguesa. O desbloqueamento pelo aprofundamento democrático (25 de Abril); pela liberação do potencial para um papel privilegiado, cosmopolita e multicultural, nas relações Norte/Sul (fim do império colonial); pela inequívoca e consistente prioridade dada à educação e ao conhecimento (UE).
Infelizmente são poucos os sinais de que estejamos a caminhar nesta direcção. O sistema político – muito restritivo da participação de cidadãos – continua por reformar. É espantosa a penúria intelectual e cultural dos nossos governantes. A política continua a ser a via mais fácil de ascensão social. O anacronismo é tal que se entra hoje para a política como no antigo regime se entrava para o seminário. E, como antes, é crucial entrar jovem, hoje, pelas Jotas. Apesar de sermos o país com mais contactos com outros povos e outras culturas durante o período mais longo da história europeia, não temos sabido transformar esse facto numa vantagem comparativa. Finalmente, no momento em que Portugal começava a dar sinais de grande dinamismo científico, o Governo decide desestabilizar a comunidade científica com um modelo de financiamento e de avaliação desajustado e retrógrado. Positivo neste domínio é apenas a reacção praticamente unânime dos cientistas portugueses em defesa da sustentabilidade do esforço feito nos últimos anos.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos