A morte de Maria de Lurdes Pintasilgo ocorreu num momento sombrio da democracia portuguesa. No momento em que os interesses económicos e políticos dos poderosos confiscam a participação democrática antes que esta se vire contra eles; no momento em que os zeladores das instituições democráticas as esvaziam sob o pretexto de assegurar o seu regular funcionamento; no momento em que a violência da injustiça social, do desemprego, da pobreza, da destruição do serviço nacional de saúde entra na casa de milhões de portugueses enquanto uns milhares de compradores de decisões políticas enchem os bolsos de dividendos e fazem esgotar os bens de luxo no mercado; no momento em que um discurso político patético do mais alto magistrado da nação transmite uma mensagem de medíocre resignação, exigindo a continuação de políticas que os portugueses afirmaram democraticamente serem ruinosas e impedindo a ruptura com elas, por supor, obviamente, que, se a houver, será para pior; no momento, enfim, em que o poder tem sempre razão contra a razão dos que não têm poder.
Neste preciso momento morreu Maria de Lurdes Pintasilgo, angustiada sim, mas não por temer que estivesse em perigo a normalidade democrática. Ela não tinha da democracia uma concepção institucionalista e conhecia suficientemente bem a história europeia para saber que, por exemplo, foi o regular funcionamento das instituições que conduziu Hitler ao poder em 1933. Para ela, a gravidade da situação residia no perigo da perda da alma da nossa democracia, uma alma necessariamente frágil numa sociedade dominada por uma cultura política autoritária, por donos do poder habituados a privatizar, não só o Estado, por deficiente controle público, mas também a própria sociedade civil, aproveitando-se da fraqueza das organizações autónomas de cidadãos e de uma comunicação social muitas vezes auto-censurada por antecipação do desejo dos donos.
Foi contra tudo isto que MLP nos deixou um radioso testamento político que se pode resumir assim: concebamos a democracia como uma aspiração sem fim cuja vitalidade está na participação dos cidadãos, combinando a democracia representativa com a democracia participativa; acreditemos na política e nos políticos mas repudiemos frontalmente os empresários políticos que transformam a participação genuína dos cidadãos em matéria prima para os seus projectos pessoais, gigantes na ambição mas minúsculos em humanidade e ética; lutemos por uma democracia com redistribuição social já que, sem ela, a democracia transforma-se em fachada benévola da injustiça social causada pelo capitalismo; aspiremos à igualdade efectiva da dignidade humana mas incluamos nela o reconhecimento da diferença igualitária entre mulheres e homens, negros e brancos, entre gerações, etnias e religiões; valorizemos o facto de a nossa democracia ser suficientemente jovem para não aceitar com facilidade que a hipocrisia se confunda com a verdade, a resignação como consenso, a falta de vontade política com a falta de alternativa; busquemos na nossa história o vigor de uma nova pulsão cosmopolita que transforme o nosso país num facilitador de trocas tanto quanto possível igualitárias entre a Europa, a África, a América Latina e a Ásia; assumamos a interculturalidade e a interreligiosidade e façamos do secularismo a asa que liberta o espírito para a transcendência em vez das algemas que o prendem a um quotidiano suicidado pelo seu sem-sentido.
É este o testamento político de Maria de Lurdes Pintasilgo. Revejamo-nos nos ideais vivos dos mortos no momento em que nos é tão difícil tolerar os ideais mortos dos vivos.