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26-08-2004        Visão
Acaba de ser publicado em Maputo um livro perturbador. De autoria de Barnabé Lucas Ncomo, intitula-se Uria Simango: um Homem, uma Causa e é já um acontecimento editorial. No seu lançamento, a que assistiram várias centenas de pessoas, foram vendidos 450 exemplares. O livro está a agitar os meios políticos moçambicanos e sinal disso mesmo é o facto, relatado pelo conceituado semanário Savana, de a publicidade ao livro na televisão moçambicana ter sido censurada por razões políticas.
O livro é uma biografia de um dos fundadores da Frelimo, Uria Simango, e nele o autor procura demonstrar, com base em dados até agora desconhecidos do grande público, que o seu biografado, oficialmente considerado um "traidor" cujo paradeiro se desconhece, foi, de facto, assassinado pela facção vitoriosa da Frelimo. Não tenho conhecimentos que me permitam avaliar a veracidade do que é relatado no livro e aos que o têm não facilitará a tarefa o facto de muitas das fontes de informação do autor serem anónimas. Por outro lado, suspeito que, numa luta ideológica com a violência com que se terá travado, é pouco crível que um dos contendores seja uma vítima sem mácula. Nada disto, porém, põe em causa o verdadeiro mérito do livro: questionar com alguma fundamentação, a história oficial da Frelimo e, portanto, a história contemporânea oficial de Moçambique. A credibilidade do argumento do livro reconhece-se facilmente no Maputo, conversando com pessoas, hoje afastadas da política, que contactaram de perto com algumas das personagens referidas ou participaram de alguns dos acontecimentos narrados. Em suma, o livro "cheira" a verdade. Traz à memória outros desaparecimentos suspeitos de outros fundadores da Frelimo, como por exemplo Lourenço Mutaca, assassinado na Etiópia na década de 80, e Shafurdin Khan, na Zâmbia na década de 90. E faz sobretudo pensar nas mortes não totalmente esclarecidas do primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, e do primeiro presidente do país, Samora Machel, para não falar dos casos mais recentes da morte do jornalista Carlos Cardoso e do economista Siba-Siba Macuacua.
Moçambique não é caso único quanto a mortes políticas não esclarecidas. Quem matou os Kennedys? Sá Carneiro foi vítima de acidente ou de atentado? Mas isto não atenua o efeito de assombramento que este livro está a causar em Moçambique. É que não só o recurso à eliminação física parece ter sido uma componente "normal" da luta política no seio da Frelimo, como também – o que é bem mais importante – não está garantido que o macabro desfile da morte tenha terminado. À luz disto, este livro coloca dois desafios exigentes à sociedade moçambicana. O primeiro dirige-se aos cientistas sociais e historiadores moçambicanos, alguns dos quais já escreveram sobre o período analisado no livro sem considerarem nenhum dos factos relatados nele e reforçando, assim, a história oficial. Espera-se deles que ponham mãos à obra e que, com critérios ainda mais exigentes dos deste livro, reinterpretem os factos da história contemporânea do país. Todos anseiam por ela e especialmente os mais jovens que encheram as sessões de lançamento do livro.
O segundo desafio dirige-se à sociedade política moçambicana. Por mais doloroso ou difícil que seja, é urgente criar uma Comissão de Verdade e de Reconciliação na qual as atrocidades do passado sejam reveladas, mesmo que implique impunidade criminal. Se tal não acontecer, continuarão a surgir livros do teor deste e, com isso, os moçambicanos, sobretudo os mais jovens, ficarão impossibilitados de saber se se revêem no lado da vida ou no lado da morte da história contemporânea do seu país.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos