Quando em 1 de Julho passado escrevi nestas páginas que a não convocação de eleições antecipadas significava a entrega do governo do país a "dois homens de cuja instabilidade tudo há a esperar e em que, portanto, não se pode confiar" estava longe de pensar que a minha advertência fosse tão rapidamente confirmada com o patético bloqueio naval ao barco Borndiep. Quem poderia imaginar que um país da União Europeia ameaçaria com vasos de guerra uma organização não governamental europeia que se dedica a sensibilizar a opinião pública europeia para a necessidade de consagrar a interrupção voluntária da gravidez como um direito fundamental da mulher, actividade que realiza com o escrupuloso respeito pelas leis nacionais da cada país? Quem poderia imaginar que o governo português iria mais longe na sua reacção que a Irlanda ou a Polónia, países onde a Igreja Católica é tida como mais influente nos actos da governação? Este governo é um desafio à imaginação catastrófica dos portugueses e suspeito que não ficaremos por aqui.
Pese embora a misoginia e o desequilíbrio emocional dos governantes, estes actos – no segundo país da Europa com a mais elevada incidência de gravidez adolescente, o único que pune criminalmente as mulheres que interrompem a gravidez e continua a ignorar as consequências dramáticas do aborto clandestino inseguro – só são possíveis porque se inserem no lastro profundo de uma mentalidade que designo de barroca e que tem uma existência multissecular entre nós. Caracteriza-se pela promoção de uma forma de poder que esconde e compensa a sua debilidade real através da dramatização exagerada dos símbolos do poder assente no culto dos efeitos especiais, do claro-escuro e da manipulação da surpresa, no aparato teatral da expressão e no ilusionismo, que se afirma tanto pelo despojamento como pelo virtuosismo técnico, mas é sempre indiferente às leis próprias da realidade material envolvente. Daqui decorre um realismo patético que manipula as emoções para impedir a argumentação racional, uma mentalidade anti-pragmática, com um gosto exacerbado pelo abismo onde não há lugar para a complexidade, a negociação ou a transformação. Salazar foi um exímio cultor do barroco.
A mentalidade barroca é estruturalmente frágil e por isso abre espaços para a transgressão, sendo de distinguir entre a transgressão consentida e a não consentida. A consentida tem duas formas históricas: o riso e a hipocrisia. As procissões do séc. XVII são um bom exemplo do riso e o mercado de compra e venda do pecado através das indulgências, da hipocrisia. Estas transgressões perpetuam a mentalidade barroca porque têm de a legitimar para a poderem ridicularizar. Nas condições contemporâneas, as transgressões não consentidas decorrem da luta contra a hipocrisia – tão patente no caso do aborto clandestino – e da defesa do espaço público onde seja possível debater racionalmente e deliberar democraticamente. Tal luta e tal defesa está na mão de todos os cidadãos e muito especificamente na mão das organizações de mulheres portuguesas que corajosamente defendem a interrupção voluntária da gravidez como um direito fundamental da mulher. Da justiça portuguesa pouco há a esperar dada a sua falta de experiência na confrontação com o poder político e a sua atávica falta de coragem em matéria de defesa dos direitos humanos. Mas, curiosamente, há talvez algo a esperar de uma Igreja Católica que já se terá dado conta da manipulação extremista da sua mensagem e do sofrimento injusto que decorre da insensatez feita governo.