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10-03-2017        Público

A suposta partilha de soberania continua a ser considerada por uma certa elite como a melhor resposta para manter o modelo social europeu e regular a globalização. No fundo, manter e reforçar a União Europeia seria a melhor forma de enfrentar Trump ou Le Pen. A pós-verdade passa por aqui.

A “Europa” já não está connosco, mas a pós-verdade, palavra do ano em 2016, está. A economia política da integração europeia falta desde há muito à verdade. O actual Presidente da Comissão Europeia e antigo líder político de um pequeno país, o Luxemburgo, transformado num grande paraíso fiscal, disse um dia que a mentira é necessária quando as coisas ficam difíceis.

Para enfrentar as dificuldades tem-se contado com uma ideologia, reafirmada por Jean-Claude Juncker no “Livro Branco sobre o Futuro da Europa”. Nos cinco cenários aí apresentados, o mercado único e o euro são as fundações invariáveis e inquestionáveis da integração. Na verdade, este pensamento único significa que o cenário é sempre o mesmo, porque únicas tenderão a ser assim as políticas que mais contam.

Entretanto, a suposta partilha de soberania continua a ser considerada por uma certa elite como a melhor resposta para manter o modelo social europeu e regular a globalização, fazendo face aos riscos dos egoísmos nacionais. No fundo, manter e reforçar a União Europeia (UE) seria a melhor forma de enfrentar Trump ou Le Pen. A pós-verdade passa por aqui.

Em primeiro lugar, pelo menos desde a década de noventa que a chamada partilha de soberania é o outro nome da perda de soberania dos Estados, em especial dos periféricos, que aceitaram prescindir de instrumentos de política económica, transferindo alguns deles para instâncias europeias muito menos democráticas. A perda de soberania é o outro lado do enfraquecimento da democracia na escala onde esta historicamente pôde funcionar intensamente: ali onde existem povos dotados de Estados, com instrumentos de política cambial, orçamental, monetária, comercial ou de controlo da circulação de capitais; ali onde não estão estruturalmente bloqueadas quaisquer possibilidades de os povos conseguirem impor, em tempo útil para as suas vidas, a correcção do que já mostrou que não funciona.

Em segundo lugar, não existe um modelo social europeu, mas sim uma ameaça europeia aos modelos sociais nacionais. A verdade é que os Estados sociais europeus, assim no plural, são historicamente construções essencialmente nacionais das classes trabalhadoras, que tudo deveram às dinâmicas política inclusivas dos espaços onde esteve e ainda sobrevive a democracia. Em Bruxelas, com mais lobistas empresariais do que Washington, estão, isso sim, alguns dos principais egoísmos, até porque aí estão hoje concentrados alguns dos mais poderosos instrumentos de erosão das solidariedades forjadas pelos povos europeus, como se viu com a troika e como se vê com a pressão junto dos que ousam, por exemplo, devolver feriados ou subir o salário mínimo. Salário mínimo nacional, reparem, como nacional é o serviço de saúde e nacionais são as principais formas de solidariedade cada vez mais ameaçadas pela perda de instrumentos de política económica que as suportem.

Em terceiro lugar, é verdade que a UE tem servido para regular a globalização, desde que se note a ambiguidade desta palavra: regras há muitas e são sempre inevitáveis no capitalismo realmente existente, qualquer que seja a sua escala. No capitalismo neoliberal, essa regulação é calibrada para expandir o campo de atuação das forças de mercado. Essa é a lógica da regulação de Bruxelas, no exacto local onde a democracia é mais fraca e os lobistas das grandes empresas mais fortes. As siglas CETA e TTIP são uma pequena e recente amostra daquilo que é a UE: um instrumento para amarrar os Estados a uma globalização iniqua e desestabilizadora. A resposta regulatória de Frankfurt, por sua vez, chama-se União Bancária e esta é o instrumento europeu para assegurar o controlo dos sistemas financeiros nacionais pelo capital estrangeiro.

Finalmente, e já em desespero, temos a versão europeia do liberalismo do medo: é isto ou Trump, encarnado em Le Pen, por exemplo. Na verdade, a UE nunca será um contraponto a Trump, porque sempre cresceu à sombra do poder imperial norte-americano e assim espera continuar. No quadro da acomodação, de resto já em curso, com a nova administração, quanto muito haverá um perigoso reforço do militarismo europeu, presente em quase todos os cenários de Juncker, com maior investimento nas forças armadas em países como a Alemanha. Trump espera assim aligeirar o fardo financeiro dos EUA com a NATO.

De resto, a verdade é que o crescimento da Frente Nacional muito deve à criação da UE desde Maastricht. Em 1991, um conservador britânico, Nigel Lawson, alertou: “Nada seria mais adequado para favorecer o crescimento da Frente Nacional do senhor Le Pen do que a criação de uma união monetária”. Um quarto de século depois, a filha aí está a dar-lhe razão. Num certo sentido, o social-liberalismo de Macron e o protofascismo de Le Pen são as duas faces da mesma moeda europeia, destruidora de uma social-democracia que sempre tinha dependido do Estado-Nação e de uma integração muito mais moderada.

Aqui chegados, é preciso dizer que as mentiras ideológicas têm custos verdadeiros, particularmente num país, como Portugal, para o qual o euro foi e é sinónimo de estagnação e de acumulação de uma dívida externa insustentável, num padrão de dependência sem precedentes.

A alternativa ao cenário Juncker é uma verdadeira integração de geometria variável, sem moeda e sem mercado únicos, o que implicaria a devolução aos Estados de instrumentos reais de política. Estados fortes, com democracias fortes, podem gerar formas de cooperação internacional mais funcionais. Menos integração, melhor integração.

Se a pós-verdade é também indissociável da pós-democracia europeia, talvez com mais democracia tenhamos mais oportunidade de descobrir a verdade nas e das comunidades políticas realmente existentes.


 
 
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João Rodrigues



 
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