Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
07-10-2004        Visão
O que acaba de passar-se com a colocação de professores é demasiado grave para não pôr os portugueses de sobreaviso. É-o sobretudo por ser apenas a ponta do iceberg, a manifestação acidental de um vasto projecto em curso de descapitalização do Estado. Consiste em retirar ao Estado a sua capacidade de regular a sociedade sob o pretexto de o transformar num Estado regulador. A aparente contradição é fácil de desfazer. O Estado português nunca foi um produtor forte de bem estar social, um Estado-providência no sentido europeu do termo. Ou seja, nunca produziu sistemas públicos de educação, saúde ou segurança social que servissem eficazmente a esmagadora maioria da população. O Estado português é, entre os Estados europeus, o que gasta menos em políticas sociais e é por isso também aquele cujas transferências financeiras (de ricos para pobres através de impostos) menos atenuam as desigualdades sociais. Relatório após relatório, os portugueses vão sabendo que vivem na sociedade mais injusta da Europa.
Depois do 25 de Abril, o Estado passou a produzir bem estar social mas fê-lo sempre timidamente e apenas com o objectivo de intervir na sociedade como regulador eficaz. Por exemplo, propôs-se produzir sistemas de saúde e de educação que, de facto, não seriam universais mas seriam suficientemente credíveis para impedir a proliferação selvagem de medicina e educação privadas. Para isso, dotou-se de serviços, de quadros técnicos e equipamentos significativos, sobretudo se compararmos com a indigência anterior. Ora é este capital técnico que está hoje sob ataque, um ataque que começou com Cavaco Silva na educação e que se alargou a todas as áreas sociais com os governos PSD/CDS. O ataque tem um nome: outsourcing. Consiste em promover a criação de empresas a quem o Estado passa a comprar os serviços que deixa de prestar. Com a conivência dos responsáveis, essas empresas pirateiam frequentemente as tecnologias desenvolvidas pelo Estado para depois as vender ao mesmo Estado. Contrariamente ao que dizem os discursos públicos, o objectivo não é a qualidade ou a eficiência da prestação. Aliás, nunca foi feito um estudo que provasse a poupança de recursos que o outsourcing diz garantir. Nem nunca foi contabilizado o custo para o Estado do tempo que os seus técnicos dedicam a corrigir os erros cometidos pelos operadores privados que supostamente são mais especializados que eles. O objectivo é outro: retirar ao Estado a capacidade de produzir serviços sociais para amanhã ser o sector privado a ditar as regras da regulação do bem estar social, o qual será, para a esmagadora maioria da população, mal estar social.
O arquitecto deste projecto é hoje Bagão Felix e o "operacional"; mais radical é Luís Filipe Pereira. A destruição do serviço nacional de saúde está em curso e a destruição mais corrosiva é a menos visível. Trata-se da incapacitação progressiva do Instituto de Gestão Informática e Financeira do Ministério da Saúde que, entre outras coisas, tem desenvolvido os sistemas informáticos da gestão dos doentes nos centros de saúde e em 90% dos hospitais. Aos técnicos altamente especializados do Instituto está a ser dito que as actividades de desenvolvimento de software devem cessar para progressivamente serem entregues a empresas privadas (seria curioso averiguar se pertencem ao mesmo grupo económico a que pertence o Ministro).
A descapitalização do Estado envolve a desmoralização dos serviços e a manipulação dos critérios para que as escolas privadas ou os hospitais SA apareçam no topo dos rankings. O projecto é grosseiramente óbvio mas a sociedade parece ter perdido a capacidade de gritar de maneira audível que o rei vai nu.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos