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01-02-2017        Le Monde Diplomatique

Em Outubro passado, as demolições recomeçaram no Município da Amadora. Sem notificação ou aviso prévio aos moradores, as retroescavadoras fizeram-se anunciar pela presença policial que, bem cedo, chegava para prevenir qualquer possibilidade de resistência. Num misto de desespero e resiliência, aqueles e aquelas para quem chegou o dia de perderem a sua casa, guardavam apressadamente o que lhes é mais precioso, uma vez que o destino dos bens é sempre assunto incerto. No asfalto e na soleira das portas, os vizinhos, solidários, procuravam saber como ajudar ou assistiam, prostrados, a mais um dia de destruição. Depois de tudo estar partido e de nenhuma solução alternativa e digna ser apresentada pelas autoridades às pessoas que viram ruir a sua casa naquele exato momento, restava saber onde poderiam dormir as famílias despejadas no âmbito de um Programa criado, em tempos, para as realojar.

Realizadas ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (1993), as demolições dos bairros de auto-construção da periferia de Lisboa têm vindo a desalojar centenas de famílias,[1] alegando que as mesmas se encontram excluídas de um Programa, que é hoje, para as autarquias que ainda não o fizeram, urgente ultimar. Assim, devido a uma letargia inicial, a urgência de concluir com a maior brevidade possível o Programa Especial de Realojamento (PER) tem contribuído para sacrificar, de forma cada vez mais flagrante, um dos seus principais objectivos, suprir as carências habitacionais de milhares de agregados familiares que habitavam em barracas.[2] A melhoria das condições de habitabilidade das populações tem sido, portanto, secundarizada perante uma necessidade aparentemente mais contingente, aquela de concluir a limpeza da imagem das metrópoles de Lisboa e Porto.[3] Sob a égide de uma concepção profundamente higienista do espaço urbano, os bairros de auto-produção foram enunciados à exaustão pelo discurso público como espaços insalubres, de ilegalidade e clandestinidade. Alvos constantes de intervenções policiais violentas, criminalizados, racializados e desumanizados, os bairros foram sendo cristalizados no imaginário público como espaços de excepção à ordem, que escapavam ao controlo das autoridades e ao escrutínio do Estado, rapidamente conduzindo à conclusão que a única solução possível seria a sua total extinção. Ademais, não pode descurar-se que os processos de urbanização e gentrificação dos centros das cidades reverberaram, em grande medida, para as suas periferias, transformando terrenos outrora considerados marginais, onde muitos bairros haviam sido previamente construídos, em espaços estratégicos para o capital financeiro.[4] Foi assim que independentemente da sua vontade, todos os moradores dos bairros foram (ou estão a ser) levados a abandonar gradualmente as suas casas.

1. Aqueles que se encontrassem recenseados no âmbito do PER tinham a oportunidade de permutar as suas habitações por apartamentos construídos pela autarquia. Contudo, a construção de grandes edificados nas margens dos municípios, reconhecidos hoje como bairros sociais, foi desde cedo criticada pela sociedade civil e pela academia. Equiparados à arquitetura social do pós-II Guerra, estas soluções arquitectónicas haviam já provado contribuir ativamente para a segregação das populações, uma vez que estabeleciam “pequenos guetos nos subúrbios das áreas metropolitanas”[5], redesenhando as fronteiras físicas e imaginárias entre o centro e a sua periferia. Além do mais, a cartografia dos bairros de realojamento bem como a duvidosa qualidade dos materiais utilizados na sua edificação parece ter estabelecido uma arquitetura institucional da pobreza que sinaliza, aos olhos mais atentos, um território de excepção. Afastadas, estas soluções parecem ter contribuído para empurrar, uma vez mais, os moradores dos bairros auto-construídos – outrora espacialmente marginais mas hoje centrais – para as franjas das urbanizações. Considere-se que muitos dos moradores dos bairros agora alvo dos processos de realojamento eram homens e mulheres que, por motivos variados mas determinantes, migraram do continente e das ilhas dos antigos espaços colonizados – então independentes – rumo a Portugal. Maioritariamente imigrantes e negros e por isso votados a uma precariedade laboral obtusa, acrescida por processos kafkianos que dificultavam tanto o acesso à documentação, como à habitação, foi nos espaços limítrofes e informais da cidade que muitos encontraram inicialmente um lugar para se estabelecerem[6] – testemunhando, desde cedo, um racismo institucional e quotidiano que marca ontologicamente a experiência de populações negras (e ciganas) na sociedade portuguesa. Como tal, argumenta-se que o estabelecimento de uma segunda periferia, em parte impulsionado pela implementação do PER, edificando complexos habitacionais como o Bairro do Casal da Boba ou o Bairro do Casal da Mira, corresponde a uma reterritorialização das relações coloniais no espaço urbano,[7] que relega para as margens da cidade os sujeitos racializados da modernidade.

2. Não obstante, no decorrer dos processos de realojamento e de erradicação dos núcleos de auto-construção, muitos moradores houve que viram negado o seu direito à habitação, quando por meio das autarquias tomaram conhecimento que não teriam direito a casa no âmbito do PER. Os motivos apresentados para a exclusão eram severos e inabaláveis: antiguidade e continuidade. Em primeira instância, todos aqueles que não habitassem os bairros no período em que as Câmaras elaboraram os recenseamentos (grosso modo, 1993-1995) não estavam abrangidos pelo Programa, eram excluídos. Além do mais, embora se assuma que no decorrer dos processos de recenseamento as autarquias se tenham escusado ao papel de polícias da imigração, inscrevendo todas as pessoas que habitavam no bairro, certo é que a nacionalidade portuguesa ou a autorização de residência eram requisitos fundamentais para aceder ao PER. Posto isto, e sabendo-se que foi precisamente nesta década que muitos imigrantes chegaram ao país, tentando a partir desse momento aceder à documentação necessária à sua regularização[8] e muitas vezes à naturalização dos seus filhos, pode adivinhar-se que muitos tenham sido aqueles e aquelas excluídos no decorrer do processo de realojamento. Assim, embora Portugal não recolha dados estatísticos de base racial ou étnica, não existindo, portanto, dados que permitam afirmá-lo quantitativamente, uma análise a materiais relativos a processos de contestação de moradores excluídos do PER, deixa transparecer que na sua grande maioria são populações imigrantes, negras e ciganas,[9] que viram, uma vez mais, ser-lhes negada pelo Estado, a sua dignidade.

Um segundo argumento apresentado para a exclusão de moradores do PER relaciona-se com a continuidade. A este propósito contam-se as histórias de alguns moradores que embora tenham sido inicialmente recenseados no âmbito do Programa, foram posteriormente excluídos quando se ausentaram, tantas vezes por motivos de saúde ou trabalho, das suas casas. Em outros casos, há moradores que reclamam não ter sido incluídos no PER por não se encontrarem em casa à data do recenseamento. Um terceiro argumento para a exclusão, ainda que menos falado e com certeza jamais admitido pelos poderes públicos, é a reivindicação. Ou seja, houve agregados que embora recenseados no PER viram o seu direito à habitação negado quando reivindicaram uma tipologia adequada no decorrer do processo de realojamento, através de pedidos de desdobramento do agregado familiar.

Paradigmáticos da execução efetiva do Programa Especial de Realojamento, estes argumentos para a exclusão intensificaram-se à medida que o tempo foi passando,[10] dando conta de uma política obsoleta, desatualizada e datada que não corresponde minimamente à realidade sociodemográfica dos lugares sobre os quais tem vindo a intervir. Tal deve-se, essencialmente, à ausência de atualizações ao recenseamento inicial que procurassem não somente excluir mas acompanhar os percursos dos agregados familiares e dos bairros em questão. Não escamoteando que haverá, com certeza, diferenças fundamentais na implementação do Programa Especial de Realojamento de território para território, e que muitas das situações descritas se agudizaram à medida que o tempo foi correndo, conclui-se, no entanto, que estas práticas institucionais são mais paradigmáticas do que excepcionais. É desta forma que, no decorrer das últimas décadas, o PER, contrário ao propósito enunciado e numa urgência de dispersão e desterritorialização, tem vindo a contribuir para agravar a exclusão social e económica a que muitos dos moradores se encontravam já, em grande medida, votados. Nos bairros auto-produzidos repousam, assim, esbatidas, as cartografias da memória de uma resistência quotidiana às agressões de um Estado que já mais reconheceu os seus moradores como sujeitos políticos.

Contudo, a violência institucional candente que aqui tão perto e quotidianamente se tem abatido sobre as pessoas, parece não ter interessado – com raras excepções, até muito recentemente – à opinião pública. Não obstante, a propósito de uma queixa apresentada pelo Colectivo Habita, em 2012, que denunciava a violência e a ilegalidade das demolições que então devastavam o Bairro de Santa Filomena e parte substancial do Bairro 6 de Maio, o Provedor de Justiça vem apelar à Câmara Municipal da Amadora (CMA), no passado mês de Agosto, que suspenda as demolições. Apontando a desatualização do Programa, recomenda ainda, ao atual governo, que se adoptem urgentemente medidas legislativas capazes de rever o PER.[11] No entanto, não sendo vinculativas, tais recomendações parecem não ter surtido qualquer efeito já que em Outubro as demolições regressaram ao Bairro 6 de Maio. Confrontados com a perda do seu único tecto ou com a certeza de o virem em breve a perder, os moradores encetaram um processo de luta, com o apoio do Colectivo Habita e do Movimento SOS Racismo, que se estende até aos dias de hoje. Note-se que é também por esta altura que tomam forma algumas reportagens e notícias capazes de dar conta da genealogia e da violência do processo,[12] reforçadas, em seguida, pela vinda da Relatora Especial das Nações Unidas para a Habitação Adequada, Leilani Farha, que reclama também a urgência de interromper as demolições, sob pena de estas violarem tacitamente o direito à habitação.[13] Acrescente-se que o processo de luta dos moradores, fez chegar a pressão também à Assembleia da República, que através da sua Comissão de Ambiente, Ornamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação e, em particular do Grupo de Trabalho, Habitação, Reabilitação Urbana e Políticas de Cidades se encontra actualmente na iminência de lançar um documento que recomende ao Governo a revisão e actualização do Programa Especial de Realojamento. Apesar desta tentativa de concertação partidária, Carla Tavares, Presidente da CMA, declarou recentemente a esta mesma comissão que não se comprometeria em suspender as demolições. Assim, embora, em parte, tenha sido o já extenso e resiliente processo de luta dos moradores[14] que obrigou, finalmente, o poder político a discutir a violência dos despejos, não há garante algum de que as demolições parem e de que uma solução digna e conjunta seja encontrada para todos aqueles que já perderam as suas casas ou que estão sob ameaça de as perder. Escudado no argumento da não-ingerência sobre o poder autárquico, o Estado central continua a permitir que a violência se alastre pelo seu território, parecendo esquecer-se que o Programa Especial de Realojamento é, na sua génese, um projecto governamental e ministerial[15] que caberia às municipalidades aderentes implementar. Perante esta apatia prolongada, resta aos moradores continuar a resistir para que as máquinas cessem o seu movimento e eles possam finalmente dormir à noite, sabendo que não serão expulsos, sem aviso, na manhã seguinte. Importante é garantir, também, que as máquinas não se desloquem para outros bairros vizinhos, onde se fizeram já anunciar, recentemente, pela madrugada.
 


[1] Atente-se aos dados disponibilizados pela Câmara Municipal da Amadora relativos às exclusões no âmbito do PER (Junho, 2016): i) Azinhaga dos Besouros – 297 Agregados familiares (32,11%); ii) Fontaínhas – 81 Agregados familiares (20,20%); iii) Santa Filomena – 239 Agregados familiares (41,07%); iv) Estrela d´África – 130 Agregados familiares (40,50%). Para mais informações: http://www.cm-amadora.pt/erradicacao-de-nucleos-degradados/306-execucao-per

[2] Decreto-Lei n.º163/93 de 7 de Maio, DR, I Série - n.º 106 07-05-1993.

[3] Iniciada com a promulgação do PER, em 1993, em que o número de barracas nestas áreas metropolitanas se estimava entre 16 e 20 mil (A Capital, 1993).

[4] Veja-se o caso dos terrenos relativos ao Bairro de Santa Filomena, adquiridos pelo valor de 47.630.000 Euros, pelo Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado Villafundo - Millenium BCP, isento do pagamento de IMI e de IMT (Villafundo, 2007).

[5] Cachado, Rita D’ Ávila (2012), Uma Etnografia na Cidade Alargada, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pp. 148.

[6] Que se somaram a um conjunto de outros bairros auto-construídos já existentes.

[7] Para mais informações sobre a territorialização das relações espaciais no período colonial consultar: Fanon, Franz (2005 [1961]), The Wretched of the Earth. New York: Grove Press.

[8] Que se pode atestar pelos então decorrentes processos de regularização extraordinária de imigrantes em 1992/1993, 1996/1997 e 2004.

[9] Na Área Metropolitana de Lisboa servem como exemplos a Quinta do Mocho, o Fim do Mundo e o Casal de Santa Filomena em que na maioria dos casos as pessoas desalojadas eram negras e imigrantes. Na Área Metropolitana do Porto casos emblemáticos como o Bacelo, Aldoar ou Aleixo ilustram situações semelhantes, onde a grande maioria das pessoas são portugueses ciganos. Denote-se que os processos de contestação e desalojamento da Azinhaga dos Besouros, da Quinta da Torre, do Estrela d’África e de Santa Filomena estão documentados a partir dos trabalhos “Via de Acesso” de Nathalie Mansoux, “Aqui tem Gente” de Leonor Areal, “Damaia dj’acaba ma inda nu sta pa li” de Daniel Veloso e Sofia Lemos e “Sua Terra, Nossa Casa” de Ryan Powell com a colaboração de Catarina Carvalho, respectivamente.

[10] Como aconteceu na Amadora.

[11] Provedor de Justiça (2016), Recomendação n.º 3/B/2016 (Alínea b), n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, na redação da Lei n.º17/2013, de 18 de Fevereiro.

[12] Como é o caso da reportagem elabora para o jornal Público por Joana Gorjão Henriques, “Bairro 6 de Maio Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa”, de 11 de Dezembro de 2016.

[13] Na comunicação social surgem títulos como “Demolições e despejos em Portugal devem acabar já” (Filomena Naves, Diário de Notícias, 14 de Dezembro de 2016) ou “Relatora da ONU sobre habitação em Portugal: “Algumas das condições que vi são deploráveis” (Joana Gorjão Henriques, Púbico, 13 de Dezembro de 2016).

[14] Como se conta numa carta escrita pelos moradores do Bairro 6 de Maio, dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas, ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, entregue no passado dia 23 de Dezembro aos seus responsáveis de gabinete.

[15] Então gerido pelos famigerados Instituto de Gestação e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) e o Instituto Nacional de Habitação (INH), hoje transformados no Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).


 
 
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Ana Rita Alves



 
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