Uma crise inédita no mercado de trabalho
A crise financeira de 2008 e a estratégia adotada para a combater conduziram a uma profunda crise económica e social que se manifestou à escala da população portuguesa num aumento brutal do desemprego, de que não há memória, e do emprego sem qualidade. Na verdade, a taxa de desemprego subiu de forma galopante, numa curva vertiginosamente ascendente que chegou a ultrapassar os 17%, durante o ano de 2013. E este aumento foi tanto mais extraordinário quanto sabemos que no início dos anos 2000, a taxa de desemprego situava-se em valores relativamente baixos, na casa dos quatro pontos percentuais. Em pouco mais de uma década o desemprego multiplicou por quatro. Desde 2008, um em cada sete empregos desapareceu, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O quadro, portanto, mudou. E mudou profundamente, quer em termos quantitativos, quer em termos qualitativos. Os números são conhecidos, abrangendo novos públicos desempregados, que somaram a públicos “difíceis” e vulneráveis vindos de trás. Além disso, não pode esquecer-se que uma larguíssima fatia de todos esses desempregados ficou à margem dos mecanismos de proteção, ou seja, a descoberto de qualquer apoio institucional e, portanto, entregues à sua sorte. E é preciso também não esquecer que as perspetivas de (re)encontrar rapidamente emprego são relativamente baixas. Duas realidades tornam-se particularmente relevantes. O desemprego jovem e o desemprego de longa duração. O desemprego passou a afetar cada vez mais os jovens. Em 2015, quase um 1/3 dos jovens (32%), muitos deles com formação superior, encontravam-se na condição de desempregados. Por outro lado, nesse mesmo ano, mais de metade dos desempregados (53%), estava nessa condição há mais de um ano. Quer uns, quer outros, com o passar do tempo e sem conseguirem (re)entrar no mercado de trabalho, deixaram de ser oficialmente contabilizados como desempregados e foram remetidos para o “pantanoso” terreno estatístico da população inativa.
Mas não se degradou apenas a realidade do desemprego. Também as condições do emprego se deterioraram – a precariedade estendeu-se, o mau emprego alastrou, os abusos “normalizaram-se” –, tal como as desigualdades sociais e o seu ponto extremo, a pobreza.
As medidas ativas: usos precários, abusos extensos e instrumentalizações proveitosas
Para responder a este cenário negro foi mobilizado um vasto universo de medidas ativas de emprego: medidas de apoio à contratação e criação de empresas, programas de formação, estágios, apoios ao empreendedorismo, Contratos Emprego-Inserção, medidas específicas destinadas a jovens, a desempregados de longa duração, a pessoas deficientes, etc. Uma oferta verdadeiramente labiríntica, sujeita a frequentes alterações ao longo do tempo e pautada por intervenções nem sempre articuladas entre si.
Estas medidas, longe de aliviarem os governos de encargos, são dispendiosas e exigentes em competências adequadas. Em termos de execução física e financeira, sofreram um forte crescimento, sobretudo depois da intervenção da troica. No final de 2008, o conjunto destas medidas abrangia perto de 346 mil pessoas, envolvendo custos na ordem dos 448 milhões de euros. No final de 2015, o número de pessoas abrangidas mais do que dobrou, passando para quase 736 mil, enquanto os custos subiram para perto dos 762 milhões de euros.
Não obstante, os serviços públicos de emprego sofreram uma significativa redução de pessoal (-16,2%) entre 2008 e 2013, comprometendo decisivamente a qualidade e eficácia das medidas, muito exigentes do ponto de vista do acompanhamento frequente e personalizado. O objectivo da redução de custos levou também a cortes em políticas de educação/formação, com efeitos negativos a longo prazo. Exemplo extremo da desqualificação das respostas foi o fim da Iniciativa Novas Oportunidades.
O campo de acção das políticas ativas deslocou-se progressivamente para o lado das empresas. Aconteceu, por exemplo, com a oferta formativa e sem grandes resultados ao nível da empregabilidade. Por outro lado, as políticas ficaram ao dispor da oferta privada de serviços, como no caso do programa Cheque-Formação ou da gestão dos Centros Protocolares entregue às empresas e parceiros sociais. Ou ainda com a atribuição de incentivos públicos a agências privadas de colocação dos desempregados e com a expansão das empresas de trabalho temporário.
As políticas sofreram também uma redução da sua diversidade. Concentraram-se os apoios nos programas de formação e nos incentivos diretos ao emprego e criação de empresas, com eficácia duvidosa. O caso dos estágios é emblemático a este respeito. Financiados em 80% por dinheiro público, os estágios tornaram-se facilmente num mecanismo de redução dos custos com pessoal para as empresas, que desenvolveram esquemas de rotação dos estagiários nos mesmos postos de trabalho.
Situação semelhante ocorreu também na esfera pública, mas com outra medida emblemática: os Contratos Emprego-Inserção. Compulsivos e sem precedência de processo negocial com os utilizadores, estes contratos, destinados a beneficiários de prestações de desemprego, serviram menos de trampolim à inserção de desempregados do que de meio para suprir necessidades reais e permanentes de trabalho na Administração Pública e também nas Instituições Particulares de Solidariedade Social, embora em menor escala. A medida foi, aliás, objecto de várias críticas públicas, incluindo as do Provedor de Justiça.
Nestes dois casos, bem como no caso das medidas destinadas a pessoas com deficiência, os utilizadores acabaram por não beneficiar verdadeiramente delas. E, no limite, até reforçaram, paradoxalmente, a sua condição de exclusão, ao “saltarem” de medida em medida, num processo continuado de marginalização do mercado regular de trabalho.
O modo como foram aplicadas as medidas ativas distorceu a sua eficácia, tornando-se muito claro que os efeitos não desejados podem emergir de uma inadequada aplicação. Além disso, concorreram também para uma certa “desconstrução” da própria categoria de desemprego. Por um lado, conferiram ao emprego um carácter cada vez mais extensivo, contribuindo para diluir as fronteiras entre emprego, desemprego e outras categorias difusas como a inatividade ou a ocupação. Por outro, o próprio fundamento do direito a um rendimento de substituição (subsídio de desemprego) mudou, tornando-se mais restrito e condicionando o potencial beneficiário a retribuir com algo em troca, em regra, sob a forma de trabalho (considerado socialmente útil) ou formação.
O definhamento das políticas passivas
Do lado das políticas passivas de emprego, a estratégia de austeridade de redução da subsidiação do desemprego e da penalização da antecipação das reformas, veio agravar ainda mais a condição dos desempregados e trabalhadores precários. Na verdade, assitiu-se a significativa redução na proteção social dos desempregados. Entre dezembro de 2009 e dezembro de 2015, o número de beneficiários do subsídio de desemprego caiu de 244 mil para 204 mil. E, no mesmo período, o número de beneficiários de subsídio social de desemprego (que carece de condição de recursos) passou de 119 mil para 57 mil.
Apenas 53% dos desempregados inscritos nos Centros de Emprego estavam a receber prestações de desemprego, segundo o Relatário da Conta da Segurança Social, do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. É necessário recuar a 2001 para se encontrar uma taxa de cobertura mais baixa (52,1%).
Mas a desproteção é facilmente visível se atendermos também a outros indicadores. Por exemplo, a despesa total com o desemprego em dezembro de 2009 cifrava-se em 1953,9 milhões de euros para um número oficial de desempregados de 517,7 mil. Em dezembro de 2015, o número oficial de desempregados aumentou para 646,5 mil, mas a despesa com desemprego diminuiu para 1760,4 milhões de euros.
Se olharmos para os montantes médios das prestações de desemprego, é de registar que também eles diminuíram. Enquanto no final de 2009 o montante médio da prestação era de 570,17 euros para os homens e 509,78 euros para as mulheres, já no final de 2015 o montante era apenas de 477,38 euros no caso dos homens e de 440,26 euros no caso das mulheres.
As políticas passivas de proteção foram, assim, secundarizadas perante as políticas ativas, deteriorando mais ainda a condição social dos desempregados. Reflexo disso foi a fuga dos desempregados mais velhos para a reforma antecipada, uma vez terminado o período de concessão da prestação de desemprego a que tinham direito. Colocados perante uma escolha dilemática e armadilhada, muitos preferiram a forte penalização no montante das pensões a permanecerem na cada vez mais “mal olhada” condição de desempregado.
É preciso ter em conta que o investimento nas medidas ativas não pode ser feito à custa do corte nas políticas compensatórias, sacrificando ainda mais a condição social dos desempregados. As políticas ativas não subsituem as políticas passivas e vice-versa. Deverão antes complementar-se.
A necessidade de agir sobre as políticas
As medidas ativas não conseguiram solucionar os problemas do mercado de trabalho trazidos pelo “ajustamento estrutural”. Não conseguiram “arranjar” o que outras políticas “desarranjaram”. Nem poderiam, em verdade, pois é fundamental a sua articulação com outras medidas de política com forte impacto nas dinâmicas do emprego, como as políticas económicas, as políticas educativas ou as políticas de proteção social, bem como a sua articulação com as políticas passivas, designadamente com os regimes de proteção no desemprego. Os resultados mostram que a qualidade e a eficácia das intervenções ficaram longe do discurso retórico, externo e interno, que as legitimou e sustentou.
A ideia enviesada de que o mercado ou o interesse privado é capaz de resolver melhor os problemas e que, portanto, deve ser ele o destinatário privilegiado dos instrumentos e apoios públicos em matéria de política de emprego conduziu a que muitos dos recursos e apoios ainda assim disponíveis fossem deslocados para o espaço do mercado e do terceiro setor (empresas, IPSS, etc.). Ao mesmo tempo as estruturas públicas foram desnatadas e, por essa via, esvaziadas de capacidades instaladas de produção de respostas com qualidade. Ora a legitimidade, a qualidade e a eficácia das intervenções não são exclusivas de qualquer ator privilegiado e tanto podem vir do mercado, quanto do Estado, das IPSS e ONG ou das autarquias.
Em certo sentido, o Estado demitiu-se ao descomprometer-se de funções que lhe cabiam e cabem diretamente. Tal como Pilatos, lavou as mãos. Num retrato global, os resultados não foram positivos e remetem para a necessidade de agir sobre as políticas no sentido de compreender como é que as vítimas – desempregados e trabalhadores precários – podem recuperar e como podemos prevenir futuros retrocessos.
Desde logo, do lado da oferta, é importante redesenhar e estabilizar o leque de medidas, recentrando as intervenções nos utilizadores e canalizando os recursos escassos para a criação efetiva de emprego de qualidade e não paraincentivos ao mau emprego. Para isso é necessário olhar para a qualidadeefetiva das múltiplas ações desenvolvidas no terreno, de maneira a fazer diminuir o desfasamento, transversal a muitas medidas, entre aquilo que é instituído e a prática. Só assim se podem evitar más práticas, tais como a ausência de processo negocial com os utilizadores ou os abusos e instrumentalizações que conduzem à expansão de um mercado de trabalho secundário. Este problema, relacionado com alguns “excessos” nas obrigações impostas aos utilizadores das medidas, só pode ser verdadeiramente combatido com um justo equilíbrio entre direitos e obrigações ajustadas aos diferentes públicos. Importa reforçar o potencial emancipatório da generalidade das medidas, e não o seu lado mais cinzento e regulatório que, infelizmente, ainda tende a ser sobrevalorizado.
Seria útil desenvolver uma sistematização profunda da vasta panóplia de medidas e programas existentes nos domínios do emprego e da inclusão, que frequentemente se acumulam para fins idênticos, sem grande articulação entre si. Depois, importaria estimular o Programa Rede Social e explorar mais outros programas de escala local como os Contratos Locais de Desenvolvimento Social. É aí, nessa escala, que os problemas mais se fazem sentir e será, por consequência, aí que convém efetuar avaliações permanentes dos problemas e dos reais impactos das medidas acionadas para lhes fazer face. Neste aspecto, a experiência dos Observatórios Locais é, sem dúvida, uma experiência muito útil, que seria vantajoso estender a todos os concelhos pela via das Redes Sociais.
Outro bom caminho seria o de reanimar o Mercado Social de Emprego, reinventando formatos, complementares ou alternativos aos anteriores, com maior grau de especificidade e precisão, que possam abarcar a diversidade de novas situações decorrentes dos efeitos da crise prolongada que deixou marcas profundas. Seria igualmente importante flexibilizar o Rendimento Social de Inserção, habilitando-o a cobrir um espetro mais alargado de novos pobres, que embora possam até apresentar rendimentos superiores aos limites impostos pela medida, se encontram em situações de fronteira e não deixam por isso de ser pobres.
Mas é necessário também agir do lado da procura, isto é, conhecer melhor os utilizadores das medidas, as suas expetativas, os seus anseios, as suas trajetórias profissionais, os seus percursos de vida. Há um enorme desconhecimento acerca da população desempregada e dos trabalhadores precários. Quanto mais se conhecer sobre estas populações, melhor se poderá agir através de políticas públicas que incorporem dimensões mais subjetivas, biográficas e relacionais.
[1] Com base no estudo realizado para o Observatório das Crises e das Alternativas do Centro de Estudos Sociais sobre Trabalho, Emprego e Políticas entre 2008 e 2015.