Centro de Estudos Sociais
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03-03-2005        Visão
Na manhã do passado dia 21 de Fevereiro todos os portugueses se deram conta que estavam a acordar num país maioritariamente de esquerda. Mas talvez nem todos se tenham dado conta de que, nesse dia e nos dias seguintes, leram e ouviram na comunicação social as análises das eleições por comentadores (quase todos homens) que entre 70% e 90% são de direita ou de centro-direita. Não tiveram, pois, tempo de celebrar. Quando se preparavam para saborear a esperança, esta já lhes tinha sido confiscada e transformada pelos produtores nacionais de fruta amarga num alimento indigesto. A construção conservadora do acto progressista dos portugueses assenta em dois não-ditos, ou seja, em dois objectivos estratégicos que para serem eficazmente prosseguidos têm de ser mantidos em silêncio pela vozearia estridente das coisas ditas, as quais só na aparência os contradizem. O primeiro não-dito é que, em termos reais, a vitória do PS vale muito pouco. O diagnóstico dos problemas da sociedade portuguesa está feito e é consensual e, por isso, consensual é também a terapêutica. As políticas terão de ser basicamente as mesmas e só vão ser postas em prática pelo PS porque o PSD teve um acidente chamado Santana Lopes. Portanto, os portugueses que pensaram ter votado na mudança estão muito enganados, e é bom que lhes vá sendo inculcada sub-liminarmente (o tal não-dito) a ideia de que o engano é tão próprio dos eleitores como a clarividência é própria dos comentadores. O segundo não-dito é que os portugueses, não só não têm direito a alternativas reais, como não têm o direito a pensar e a agir alternativamente. Ou seja, a política de que não há alternativas tem de ser complementada pela neutralização da vontade de alternativas, sobretudo da vontade consistente de alternativas credíveis. Este objectivo por que visa ir mais fundo na manipulação da subjectividade política dos portugueses exigiu uma estridência especial. Assim irrompeu o coro unânime da desvalorização e da hostilização do Bloco de Esquerda. Não houve estrofe que não fosse bisada: como é possível que trotskistas pretendam passar por sociais-democratas, perguntam indignados comentadores ex-maoístas e ex-proalbaneses; o BE sofreu a pesada derrota ao não impedir que o PS tivesse maioria absoluta, sendo pouco relevante que tenha quase triplicado o número de deputados; o BE é uma esquerda de protesto, sem vocação para o governo, sem qualquer objectivo político logo que seja obtida a despenalização do aborto, não vindo ao caso que já hoje vivamos governados por algumas leis que saíram da iniciativa do BE; a postura virtuosa de Louçã é, no fundo, um defeito, sendo tão natural zurzi-lo com metáforas religiosas negativas ("bispo", "pregador"), como utilizar a tão provável quanto colossal ilusão de Fátima para conquistar votos. Em suma, se os portugueses se enganaram em geral nestas eleições, enganaram-se em especial quando votaram no BE. O objectivo não-dito é, afinal, simples: em 2009, o melhor que pode acontecer ao PS é a maioria relativa e, para evitar que se crie uma maioria governamental de esquerda, é decisivo neutralizar desde já o BE. Nisto estarão unidos a direita e o PCP, e é por isso que, aos olhos da primeira, o segundo é já uma incubadora de inovação política. Estes dois não-ditos suscitam a primeira exigência do novo ciclo político, uma exigência que não é para o governo: que, ao menos, a comunicação social pública mude a grelha de comentadores para que ela reflicta o país real que votou maioritariamente à esquerda e onde a maioria são mulheres.
O primeiro não-dito das análises conservadoras tem uma ponta de verdade. O pântano da estagnação e da desagregação governamental a que nos conduziram, entre outros factores, às hesitações do Presidente da República, converteu estas eleições num ritual de purificação. Todos os rituais deste tipo implicam um corte abrupto com o passado e a confiança inocente num começar de novo. Nos últimos oitenta anos, os portugueses foram chamados a participar de dois rituais de purificação: a subida de Salazar ao poder e o 25 de Abril. Todos os rituais envolvem o sacrifício de animais. A grandeza do sacrifício indica a radicalidade das rupturas. No primeiro ritual, o animal sacrificado foi a democracia, no segundo, a ditadura. É importante ter-se em mente que nas últimas eleições o animal sacrificado foi de muito menor porte. Não foi sequer o PSD. Foi Santana Lopes. É, pois, de prever que as continuidades sejam mais significativas e os novos começos, menos novos. Como, aliás, deve ser em democracia.
Com estas limitações, compete à esquerda maximizar a possibilidade de começos novos. Eis as linhas inauguradoras fundamentais. Em primeiro lugar, a política simbólica. Trata-se das medidas que dão sinais credíveis de que algo novo está no ar. Entre tais medidas: menos ministérios, mais mulheres no governo, mais ministros nomeados por critérios de competência, nenhum jovem secretário de Estado, vindo das jotas sem qualquer competência ou experiência e apenas com a missão de fazer os fretes com que os ministros não se querem comprometer. Em segundo lugar, a política do país real. A nossa classe política conhece muito mal o país e quando chega ao poder tende a ignorar tudo o que está investigado na sua área de governo por especialistas credenciados. Será de desconfiar do ministro que, ao tomar posse, saiba tudo sobre o seu sector e tenha prontas todas as medidas. Em terceiro lugar, a política da participação. Contra os populismos da desconcentração é fundamental que em cada área de governação se estabeleçam, desde já, canais eficazes de consulta e articulação com a sociedade civil, uma política que tem de ser pró-activa no sentido de estimular a organização dos sectores mais vulneráveis, invisíveis e desorganizados. Esta política é tanto mais necessária quanto é pasmosa a perda de qualidade da representação que decorre das últimas eleições. Tomem-se as biografias sociais dos deputados eleitos pelo PS e pelo PSD e submetam-se a um referendo popular. Estou certo que 80% serão considerados inaptos para o cargo.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos