A “crise migratória” com que a Europa se confronta, mais do que resultado da quantidade de pessoas chegadas, é consequência da inaptidão das instituições europeias, dos diversos Estados e respetivas sociedades para um acolhimento congruente e sensível.
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), nos últimos dois anos chegaram à Europa quase um milhão e meio de pessoas. Fugidas da guerra umas, outras da violência e miséria de um quotidiano sem futuro, irromperam Europa adentro, ultrapassando as fronteiras de Schengen, clamando pelos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano plasmados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Depois do impacto inicial, a solução encontrada passou pela relocalização dos refugiados pelos diversos países europeus. Nesse âmbito, a Portugal cabe acolher cerca de 4500 refugiados ao longo de três anos, sendo que até ao final de 2016 tinham chegado ao país 720 pessoas.
De entre as questões sociais relacionadas com o acolhimento de refugiados e imigrantes, o tema da saúde surge com particular acuidade. Como é referido no último relatório Migration Health 2015 da OIM, as migrações e a mobilidade populacional são um determinante social da saúde. Este é um assunto extremamente relevante para as populações que estão em movimento, bem como para as sociedades de destino, com implicações na saúde pública, nos direitos humanos, na equidade e desenvolvimento social.
Os desafios que se colocam aos países de acolhimento, entre os quais se encontra Portugal, é o da adequação dos cuidados de saúde à vulnerabilidade destas populações. Migrantes e refugiados são extremamente vulneráveis, não apenas pela violência e pobreza a que estiveram expostos nos países de origem, mas também pelas circunstâncias das viagens realizadas e ainda pela descontextualização a que estão sujeitos nas sociedades de destino. Não está em causa a competência técnica dos cuidados numa abordagem biomédica face às necessidades em saúde destes grupos específicos. Essencialmente, está em causa a competência sócio-antropológica dos técnicos na prestação de cuidados de saúde congruentes e sensíveis, a indivíduos com distintas perceções do corpo, específicas formas de família e sociabilidade, diferentes visões do mundo.
A competência sócio-antropológica em saúde pode ser definida como a capacidade de prestar cuidados de saúde com eficácia, em situações culturalmente diferenciadas. Este conceito remete para a década de 50 do século XX, e para o contributo de Madeleine Leininger, uma jovem enfermeira norte americana. Quando iniciou o seu trabalho num serviço de crianças com perturbações mentais, Leininger compreendeu que existia uma profunda lacuna na compreensão dos factores culturais que influenciavam o comportamento das crianças que estavam sob o seu cuidado. Aspectos emocionais, comportamentais e códigos de conduta familiares com marcas culturais não eram tidos em conta nos processos terapêuticos. As respostas institucionais e os modelos biomédicos revelaram-se insuficientes para uma abordagem integral destas crianças nos serviços de saúde mental. Foi essa necessidade de compreensão ampla das pessoas que levou Leininger a construir um percurso de busca e construção teórica sobre cuidados culturalmente congruentes.
A ideia de um cuidar culturalmente congruente e sensível implica uma aproximação etnográfica à experiência vivida das pessoas alvo dos cuidados, quer seja nos seus processos de transição vivencial, quer nos contextos de saúde-doença. Para além da doença clinicamente avaliada, existem “idiomas culturais de sofrimento”, que são mediados pela cultura e que é preciso considerar como essenciais nas trajectórias do cuidado. Os próprios itinerários de busca de ajuda em situação de doença exprimem metáforas culturais que é preciso compreender “a partir de dentro”.
Os modelos de assistência massificada em contextos hospitalares caracterizam-se hoje por padrões de eficácia organizacional que envolvem procedimentos altamente invasivos e especializadas e procedimentos tecnológicos estandardizados. Esse extraordinário desenvolvimento é expresso em dados muito concretos, como a baixa da mortalidade e o aumento da esperança média de vida da população à escala global. Nesta perspetiva, as dimensões sociais e culturais tendem a não ser prioritárias. No entanto, porque as pessoas não são apenas uma dimensão biológica, mas também produto das suas próprias circunstâncias e contextos, todas essa sofisticação tecnológica e biomédica só faz sentido, se se superar a padronização dos procedimentos, e se colocar no centro dos processos a singularidade e a vivência de cada pessoa.
Neste sentido, as pessoas em mobilidade constituem um desafio aos prestadores de cuidados de saúde. Esse desafio não é só colocado pelos refugiados que estão a chegar a Portugal, mas por todos aqueles que atravessam fronteiras, sejam eles refugiados, migrantes indocumentados, indiferenciados, altamente qualificados, portadores de Vistos Gold, turistas, estudantes estrangeiros, entre muitos outros. E considerando que muitos profissionais de saúde portugueses são eles próprios emigrantes, o desafio do cuidar culturalmente congruente coloca-se também quando eles exercem esses cuidados noutros países.
A chamada “crise dos refugiados” ou “crise migratória” com que a Europa se confronta, mais do que ser resultado da quantidade de pessoas aqui chegadas, é consequência da inaptidão das instituições europeias, dos diversos Estados e respetivas sociedades para um acolhimento congruente e sensível. Neste âmbito, as instâncias de saúde e os seus profissionais têm a oportunidade de superar preconceitos sociais e populismos políticos, na prestação de cuidados culturalmente sensíveis a todos os refugiados e migrantes que chegaram e continuarão a chegar.