Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
23-06-2005        Visão
A utopia está de luto no espaço de língua oficial portuguesa. Enquanto imaginação activa de uma sociedade melhor, a utopia implica a crítica radical da sociedade existente e a vontade veemente de a transformar no sentido imaginado. Como sem imaginação, crítica e vontade não há vida social, podemos dizer que a utopia nunca morre. O que morre são os projectos utópicos em que ela se concretiza. Quando tal acontece, a utopia fica de luto e só o alivia à medida que novos projectos utópicos vão emergindo no horizonte.
Nas últimas semanas têm vindo notícias de vários cantos do espaço de língua oficial portuguesa, dando conta da morte dos projectos utópicos que marcaram a vida das nossas sociedades nos últimos trinta anos. A primeira notícia vem de Portugal com a morte de Álvaro Cunhal (e de Vasco Gonçalves). É a notícia da morte do projecto utópico socialista marxista-leninista? Este projecto morreu (e bem) há trinta anos. Não foi ele certamente que foi a enterrar com Álvaro Cunhal, até porque não se pode celebrar simultaneamente um herói e o seu fracasso. A enterrar foi uma classe de políticos entregues incondicionalmente a uma causa que consideram justa, dispostos ao sacrifício pessoal em nome da solidariedade para com os mais fracos e com vista à construção de uma sociedade melhor. O vazio desta entrega é a dimensão do nosso luto.
A segunda notícia vem de Moçambique. Um dos mais insignes jornalistas moçambicanos, Machado da Graça, compara com amargura os anos exaltantes do período revolucionário pós-independência – "pela frente estava todo um belo país a precisar do nosso trabalho e entusiasmo para andar para a frente";… "preparados para irmos onde Samora nos dissesse para irmos, sem pensar duas vezes"; – com os tempos mais recentes: "pelo ralo do esgoto [ foram ] desaparecendo os ideais e as chamadas conquistas populares. O que tinha sido nacionalizado, para servir o povo, foi sendo deixado arruinar para depois ser privatizado, a preço simbólico, para aqueles mesmos que levaram as coisas à ruína... Começámos a ver crescer, em paralelo, as barrigas dos dirigentes e as mansões luxuosas que foram surgindo como cogumelos";. O luto de Machado da Graça é por um projecto de país, de um "país rebelde, senhor do seu nariz";, sem ter de se vergar às imposições do capitalismo internacional.
A terceira notícia vem do Brasil e conta-nos das suspeitas de corrupção que avassalam o governo de Lula, aparentemente envolvido no encobrimento de ilegalidades graves e na compra de votos para sobreviver politicamente. Esta notícia soma-se à do espantoso cinismo com que alguns governantes viram as costas às aspirações de justiça do povo sofrido que os elegeu. Ao contrário das duas mortes anteriores, esta não está ainda consumada mas deixa já que se espalhe, quase por antecipação, uma sensação de luto inconsolável, como se as lutas abnegadas de várias gerações por uma democracia mais honrada fossem, tal como em Moçambique, desaparecendo inexoravelmente "pelo ralo do esgoto";.
O espaço de língua oficial portuguesa pode orgulhar-se, como nenhum outro espaço transnacional, dos exaltantes projectos utópicos dos últimos trinta anos. Vivemos hoje melhor porque eles fracassaram ou apesar de eles terem fracassado? O certo é que o problema da injustiça social que tais projectos pretendiam resolver continua connosco e o dilema do presente é que este problema é hoje tão real quanto irreais nos parecem as soluções então propostas. Quando começarmos a pensar em novas soluções, a utopia começará a aliviar luto. Temos a poesia de Eugénio de Andrade para lembrar que assim será: ";Talvez a palavra atinja o seu cume/ talvez um segredo/ chegue ainda a tempo/ e desperte o lume";.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos