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15-08-2005        Visão
A perplexidade causada pela crise política brasileira reside no facto de Lula, ora parecer apenas a ponta do iceberg, ora parecer o iceberg todo. No primeiro caso, Lula é a consequência de um sistema político e económico que pode levar o país ao caos se entretanto não forem tomadas medidas correctivas corajosas. No segundo caso, Lula é a causa de uma perturbação política grave: o cargo de presidente da República, ao ser assumido por alguém com deficiente preparação técnica e política, transforma rapidamente os demasiados poderes que acumula em demasiadas impotências. Por agora é difícil identificar o perfil da crise. Uma coisa é certa: o Brasil entra penosamente num novo período político, um período que podemos designar por pós-lulismo. É ainda cedo para definir o legado histórico do lulismo, enquanto forma de governo. Para já, ele parece ter constituído o máximo disfarce histórico do neoliberalismo nos últimos vinte anos, ou seja, a mais elaborada conversão política do mais lídimo representante dos oprimidos (pela sua trajectória e pelo seu peso eleitoral) no mais servil e pateticamente zeloso representante dos opressores.
O pós-lulismo pode ocorrer por várias vias, por impeachment, pela desistência de Lula a um novo mandato, pela candidatura seguida de derrota. A via certamente menos onerosa, mas também a mais improvável, seria a de um pós-lulismo conduzido pelo próprio Lula: demissão imediata da equipa económica; redução do superavit e aumento do salário mínimo; reforma do sistema político de modo a torná-lo mais transparente e democrático. O problema central da esquerda brasileira é de saber se o pós-lulismo será também o pós-petismo. A descaracterização do petismo por parte do Governo Lula foi tão massiva e tão caricatural – montar um esquema de corrupção para fazer aprovar políticas de direita – que, paradoxalmente, o PT tem todas as condições para sair reforçado no pós-lulismo. Basta para tal que tenha a coragem de assumir em pleno o ideário político e ético que lhe permitiu captar a esperança de tantos milhões de brasileiros. Pessoalmente, penso que as circunstâncias são favoráveis a que tal ocorra.
Todos as crises políticas são processos de emergência e, por isso, não podem ser vistos apenas pelo seu lado negativo. Duas emergências positivas devem ser salientadas. A primeira é que as próximas eleições brasileiras serão talvez as mais livres e transparentes da história recente da democracia representativa, não só no Brasil como no mundo. O PT tem tudo a ganhar com este facto, sobretudo porque a sua base social e política parece estar disponível para uma nova tentativa, desde que assente num pacto político e não mais num cheque em branco. Nas condições brasileiras, o tipo de esperança frustrada pela primeira tentativa não é facilmente transferível para a direita oligárquica. A segunda emergência positiva é a estatura política de Tarso Genro, um dos políticos de esquerda mais bem preparados do mundo. O seu nome internacional emergiu com a experiência do orçamento participativo em Porto Alegre, considerada pela ONU como uma das grandes inovações urbanas do final do séc. XX. Com a entrada no Governo Lula, Tarso Genro ganhou a dimensão nacional que há muito lhe era devida. Foi o melhor ministro – a reforma universitária por ele proposta é das mais consistentes e progressistas que conheço – o ministro que com mais êxito brandiu o petismo contra o lulismo. Um partido que gerou políticos de estatura de Tarso Genro merece olhar o futuro com confiança. Mas tal só ocorrerá se o PT souber controlar a pulsão fraccionista de molde a fazer dela gérmen da diversidade na união e não factor de fragmentação em lutas fratricidas pelo poder.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos