Centro de Estudos Sociais
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29-09-2005        Visão
Os portugueses estão certamente perplexos ante a onda de greves que se anuncia e a agitação social que a precede por parte de magistrados e funcionários, forças armadas e de segurança, médicos, etc. A perplexidade é dupla. Por um lado, a agitação social não está a ser criada por aqueles que estão a ser mais duramente atingidos pela crise económica, pelos trabalhadores da indústria com emprego cada vez mais precário, pelos desempregados, vítimas da deslocalização de empresas, pelos trabalhadores imigrantes clandestinos obrigados a aceitar um horário duplo de trabalho para ganhar o salário mínimo (e, às vezes, menos que isso), pelos idosos dependentes de um serviço nacional de saúde cada vez menos acessível. Pelo contrário, a agitação social está a ser criada por trabalhadores que compõem a classe média (por vezes, classe média alta), com segurança de emprego, detentora de direitos sociais que não estão ao alcance da grande maioria dos cidadãos e mesmo de privilégios chocantes à luz da situação que o país vive. Por outro lado, é grande a desproporção entre a agressividade da contestação e a relativa moderação das reformas propostas pelo governo, todas elas destinadas a parificar, gradual e selectivamente, os benefícios de alguns "corpos especiais"; aos de um corpo social já de si beneficiado em relação aos restantes trabalhadores portugueses, os funcionários públicos.
A resolução deste puzzle é complexa e passa pelas seguintes ideias. Primeiro, a contestação social, sobretudo no campo do trabalho, depende hoje muito da segurança de emprego. Quanto mais precário é o emprego, menor é a capacidade para lutar contra a sua precarização. Segundo, o sindicalismo português está a abandonar a sua tradicional base operária. Esta, embora continue a alimentar a retórica dos dirigentes sindicais, é cada vez mais frágil e incapaz de sustentar acções de reivindicação concretas. Terceiro, a agitação social é protagonizada por uma pequena faixa da população activa, mas com grande poder social e a cumplicidade de uma comunicação social conservadora, interessada na desmoralização do Estado e incapaz de uma pedagogia activa sobre o que está verdadeiramente em causa. Quarto, a sociedade portuguesa é uma das mais injustas da Europa e a mobilidade social que se verificou entre nós nos últimos trinta anos está bloqueada. Ela assentou, por um lado, na escola e nas qualificações e, por outro lado, no Estado enquanto sector de referência, tanto a nível salarial como nas condições de emprego e é nestes domínios que os bloqueios são mais visíveis. Em 1999, a probabilidade de um filho de um operário aceder a uma profissão liberal era sete vezes menor que a de um filho de um profissional liberal. Estes bloqueios agravaram-se depois de 2000 com a crise financeira do Estado, a crise da economia e a desvalorização geral dos diplomas. Quinto, o Estado tem sido um agente "anómalo"; de promoção social. Por um lado, devido ao contexto geral do recrutamento inicial, tem permitido a ascensão a cargos de chefia a pessoas com baixas qualificações. Por outro lado, os desequilíbrios na organização dos interesses tornaram possível que certos grupos, com maior poder negocial, obtivessem privilégios injustificados, porque não vinculados directamente à natureza das funções. Constituíram-se sectores e corpos especiais e a sua composição tem sido sempre problemática.
É importante que o governo seja firme nos princípios e flexível na sua aplicação e que os grevistas se centrem nas condições dignas para o exercício das suas importantes funções, de modo tal que a sua contestação não seja vista como uma luta pelos despojos de um Estado cada vez menos disponível para a maioria dos cidadãos.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos