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01-02-2017        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Assinalam-se este ano os 100 anos da Revolução Russa (RR)[1] e também os 150 anos da publicação do primeiro volume de Das Kapital de Karl Marx. Juntar as duas efemérides pode parecer estranho porque Marx nunca escreveu em detalhe sobre a revolução e a sociedade comunista e, se tivesse escrito, é inimaginável que o que escrevesse tivesse alguma semelhança com o que foi a União Soviética (URSS), sobretudo depois que Estaline assumiu a liderança do partido e do Estado. A verdade é que muitos dos debates que a obra de Marx suscitou durante o século XX, fora da URSS, foram um modo indirecto de discutir os méritos e os deméritos da RR. Agora, que as revoluções feitas em nome do marxismo ou terminaram ou evoluíram para... o capitalismo, talvez Marx (e o marxismo) tenha finalmente a oportunidade de ser discutido como merece – como teoria social. A verdade é que o livro de Marx, que levou cinco anos a vender os primeiros mil exemplares antes de se tornar um dos livros mais influentes do século XX, voltou a ser um bestseller em tempos recentes e, duas décadas depois da queda do Muro de Berlim, estava finalmente a ser lido em países que tinham sido parte da URSS. Que atração poderá suscitar um livro tão denso? Que apelo pode ter num momento em que tanto a opinião pública como a esmagadora maioria dos intelectuais estão convencidos de que o capitalismo não tem fim e que, se tiver, não será certamente seguido pelo socialismo? Há 23 anos publiquei um texto sobre o marxismo como teoria social.[2] Numa próxima coluna indicarei o que desde então mudou e não mudou na minha opinião e procurarei responder a estas perguntas. Hoje debruço-me sobre o significado da Revolução Russa.

Muito provavelmente os debates que durante este ano tiverem lugar sobre a Revolução Russa irão repetir tudo o que já foi dito e debatido e terminará com a mesma sensação de que é impossível um consenso sobre se a RR foi um êxito ou um fracasso. À primeira vista é estranho que assim seja, pois quer se considere que a RR terminou com a chegada de Estaline ao poder (a posição de Trotsky, um dos líderes da revolução) ou com o golpe de Estado de Boris Yeltsin em 1993, parece evidente que fracassou. E, no entanto, tal não é evidente, e a razão não está na avaliação do passado, mas na avaliação do nosso presente. O triunfo da RR reside em ter levantado todos os problemas com que as sociedades capitalistas se debatem ainda hoje. O seu fracasso reside em não ter resolvido nenhum. Excepto um. Em próximas colunas abordarei alguns dos problemas que a RR não resolveu e nos continuam a apoquentar. Hoje debruço-me sobre o único problema que ela resolveu.

Pode o capitalismo promover o bem estar das grandes maiorias sem que esteja no terreno da luta social uma alternativa credível e inequívoca ao capitalismo? Este foi o problema que a RR resolveu e a resposta é não. A RR mostrou às classes trabalhadoras de todo mundo, e muito especialmente às europeias, que o capitalismo não era uma fatalidade, que havia uma alternativa à miséria, à insegurança do desemprego iminente, à prepotência dos patrões, a governos que serviam os interesses de minorias poderosas mesmo quando diziam o contrário. Mas a RR ocorreu num dos países mais atrasados da Europa e Lenine tinha plena consciência de que o êxito da revolução socialista mundial e da própria RR dependia de ela poder estender-se aos países mais desenvolvidos, com sólida base industrial e amplas classes operárias. Na altura, esse país era a Alemanha. O fracasso da revolução alemã de 1918-1919 fez com que o movimento operário se dividisse e uma boa parte dele passasse a defender que era possível atingir os mesmos objectivos por vias diferentes da seguida pelos operários russos. Mas a ideia da possibilidade de uma sociedade alternativa à sociedade capitalista manteve-se intacta. Consolidava-se, assim, o que se passou a designar por reformismo, o caminho gradual e democrático para uma sociedade socialista que combinasse as conquistas sociais da RR com as conquistas políticas, democráticas dos países ocidentais. No pós-guerra, o reformismo dava origem à social-democracia europeia, um sistema político que combinava altos níveis de produtividade com altos níveis de proteção social. Foi então que as classes trabalhadoras puderam, pela primeira vez na história, planear a sua vida e o futuro dos seus filhos. Educação, saúde e segurança social públicas, entre muitos outros direitos sociais e laborais. Tornou-se claro que a social democracia nunca caminharia para uma sociedade socialista, mas que parecia garantir o fim irreversível do capitalismo selvagem e a sua substituição por um capitalismo de rosto humano.

Entretanto, do outro lado da “cortina de ferro”, a República Soviética (URSS), apesar do terror de Estaline, ou precisamente por causa dele, revelava uma pujança industrial portentosa que transformava em poucas décadas uma das regiões mais atrasadas da Europa numa potência industrial que rivalizava com o capitalismo ocidental e, muito especialmente com os EUA, o país que emergira da segunda guerra mundial como o mais poderoso do mundo. Esta rivalidade veio a traduzir-se na Guerra Fria que dominou a política internacional nas décadas seguintes. Foi ela que determinou o perdão em 1953 de boa parte da imensa dívida da Alemanha Ocidental contraída nas duas guerras que infligira à Europa e perdera. Era preciso conceder ao capitalismo alemão ocidental condições para rivalizar com o desenvolvimento da Alemanha Oriental, então a república soviética mais desenvolvida. As divisões entre os partidos que se reclamavam da defesa dos interesses dos trabalhadores (os partidos socialistas ou social-democratas e os partidos comunistas) foram uma parte importante da Guerra Fria, com os socialistas a atacarem os comunistas por serem coniventes com os crimes de Estaline e defenderem a ditadura soviética, e os comunistas a atacarem os socialistas por terem traído a causa socialista e serem partidos de direita muitas vezes ao serviço do imperialismo norte-americano. Mal podiam imaginar então o muito que os unia.

Entretanto, o Muro de Berlim caiu em 1989 e pouco depois colapsou a URSS. Era o fim do socialismo, o fim de uma alternativa clara ao capitalismo, celebrado incondicional e desprevenidamente por todos os democratas do mundo. Entretanto, para surpresa de muitos, consolidava-se globalmente a versão mais anti-social do capitalismo do século XX, o neoliberalismo, progressivamente articulado (sobretudo a partir da presidência de Bill Clinton) com a dimensão mais predadora da acumulação capitalista: o capital financeiro. Intensificava-se a guerra contra os direitos económicos e sociais, os ganhos de produtividade desligavam-se das melhorias salariais, o desemprego voltava como o fantasma de sempre, a concentração da riqueza aumentava exponencialmente. Era a guerra contra a social-democracia que na Europa passou a ser liderada pela Comissão Europeia, sob a liderança de Durão Barroso, e pelo Banco Central Europeu.

Os últimos anos mostraram que, com a queda do Muro de Berlim, não colapsou apenas o socialismo, colapsou também a social-democracia. Tornou-se claro que os ganhos das classes trabalhadoras das décadas anteriores tinham sido possíveis porque a URSS e a alternativa ao capitalismo existiam. Constituíam uma profunda ameaça ao capitalismo e este, por instinto de sobrevivência, fizera as concessões necessárias (tributação, regulação social) para poder garantir a sua reprodução. Quando a alternativa colapsou e, com ela, a ameaça, o capitalismo deixou de temer inimigos e voltou à sua vertigem predadora, concentradora de riqueza, armadilhado na sua pulsão para, em momentos sucessivos, criar imensa riqueza e destruir imensa riqueza, nomeadamente humana. Desde a queda do Muro de Berlim estamos num tempo que tem algumas semelhanças com o período da Santa Aliança que, a partir de 1815 e após a derrota de Napoleão, procurou varrer da imaginação dos europeus todas as conquistas da Revolução Francesa. Não por coincidência e salvas as devidas proporções (as conquistas das classes trabalhadoras que ainda não foi possível eliminar por via democrática), a acumulação capitalista assume hoje uma agressividade que faz lembrar o período pré-RR. E tudo leva a crer que, enquanto não surgir uma alternativa credível ao capitalismo, a situação dos trabalhadores, dos pobres, dos emigrantes, dos pensionistas, das classes médias sempre-à-beira-da-queda-abrupta-na-pobreza não melhorará significativamente. Obviamente que a alternativa não será (nem seria bom que fosse) do tipo da que foi criada pela RR. Mas terá de ser uma alternativa clara. Mostrar isto mesmo foi grande mérito da Revolução Russa.



[1] Quando me refiro à Revolução Russa refiro-me exclusivamente à Revolução de Outubro porque foi essa que abalou o mundo e condicionou a vida de cerca de um terço da população mundial nas décadas seguintes. Foi precedida da Revolução de Fevereiro do mesmo ano que depôs o Czar e que durou até 26 de Outubro (segundo o calendário juliano então em vigor na Rússia), quando os Bolcheviques, liderados por Lenine e Trotsky, tomaram o poder com as palavras de ordem “paz, pão e terra”, “todo o poder aos sovietes”, ou seja, aos conselhos de operários, camponeses e soldados.

[2] Pela Mão de Alice, originalmente publicado em 1994. Pode consultar a 9ª edição revista e aumentada publicada em 2013 por Edições Almedina, p.33-56.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
revolução russa    marxismo    URSS