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08-12-2005        Visão
Os últimos vinte anos foram abundantes em processos constitucionais – assembleias ou comissões constituintes convocadas com o objectivo de elaborarem novas Constituições – na Europa Central e de Leste, na América Latina, na África e na Ásia. Assistimos a uma onda de constitucionalismo que provavelmente está agora a chegar ao fim. As razões que estiveram por detrás deste movimento constitucional variaram de país para país, mas estiveram em geral relacionadas com a criação ou restauração de regimes democráticos depois de períodos de governo autoritário, do fim do comunismo na Europa e das ditaduras civis e militares na América Latina ao fim do apartheid na África do Sul e do governo revolucionário de Moçambique. Esta onda constitucional, de que Portugal e Espanha foram iniciadores, criou expectativas democráticas em muitos milhões de cidadãos para quem a democracia era um sonho todos os dias esmagado por governos discricionários e por vezes corruptos. Entre tais expectativas, as mais elementares eram as seguintes: governo livremente eleito, sujeito à Constituição e à lei e às opções dos cidadãos regularmente manifestadas; garantia do respeito dos direitos humanos e da promoção do bem-estar da população, em geral, e da mais vulnerável, em especial; sistema judicial independente e eficiente com garantia de efectivo acesso ao direito e à justiça; ausência de discriminação com base no sexo, raça, etnia ou religião; serviços públicos fornecendo aos cidadãos bens colectivos básicos (saúde, educação, segurança social, transportes); política e administração pública transparentes e livres de corrupção.
Apesar de elementares, estas expectativas têm sido frustradas na grande maioria dos casos: governos autoritários sob fachada democrática; sistema judicial ineficiente e dependente do poder político; corrupção generalizada; degradação do bem-estar; privatização dos serviços públicos e aumento da desigualdade social. Em geral, pode dizer-se que a última onda constitucional não conseguiu estabelecer uma articulação virtuosa entre democracia e bem-estar social. Pelo contrário, sondagens na Europa pós-comunista e na América Latina e na África revelam que, para sectores significativos da população, a democracia significou a queda do nível de vida. Mais preocupante ainda é o facto de o constitucionalismo ter sido, em tempos recentes, manipulado por poderes políticos interessados em beneficiar da legitimidade democrática que ele confere para atingir objectivos que redundam na redução da democracia. O ano de 2005 conheceu duas dessas tentativas, muito diferentes entre si, mas convergentes na orientação política, no instrumento de que se serviram (o referendo) e também no facto de ambas terem fracassado. Na União Europeia, os franceses e os holandeses disseram não a um projecto constitucional redigido nas costas dos cidadãos europeus e mais interessado em constitucionalizar o mercado que a democracia. No passado dia 21, os Quenianos disseram não a um projecto constitucional que nasceu como um dos mais progressistas e participados de África, mas que nos últimos anos fora totalmente adulterado pelo Presidente Kibaki para concentrar em si e no governo central poderes excessivos e pouco susceptíveis de controle democrático. O facto de ambas as tentativas terem falhado é, em si mesmo, animador. Significa que, quando o processo constitucional é usado para virar a soberania do povo contra o povo e o exercício da cidadania contra a cidadania, dizer não à Constituição é acto de afirmação democrática. Que isto aconteça tanto na Europa como em África é sinal de que a globalização dos mercados livres terá de conviver cada vez mais com a globalização de cidadãos livres.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos