Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
30-03-2006        Visão
Ao contrário de outros choques anunciados nos últimos anos, mas de que pouco ou nada resultou (choque fiscal, tecnológico, etc.), está em curso uma transformação profunda da administração pública (AP) e, ao que se anuncia, do próprio Estado. Pelas medidas já tomadas, pela lógica global que lhe subjaz e pela vontade política que as anima é de crer que, desta vez, os resultados sejam palpáveis e nada fique como dantes. Daí a ideia do choque desburocrático. E é tanto mais de crer quanto é certo que, ao contrário dos choques anteriormente anunciados, o choque desburocrático depende exclusivamente do Estado. Ora, como tenho vindo a defender, ao arrepio do pensamento liberal hoje pateticamente dominante, o Estado tem actuado em muitos momentos da nossa história como uma "imaginação do centro", um agente catalizador de energias modernizadoras que simultaneamente nos aproximam das realidades sociais e políticas dos países mais desenvolvidos (agora, União Europeia) e escondem a real medida (sempre menor que a anunciada) dessa aproximação. Este protagonismo do Estado é o outro lado da falta de hegemonia burguesa ou, como se diz agora, da fraqueza da sociedade civil.
Dado que este choque está no começo, um começo vigoroso, é adequado definir os critérios que permitam aos cidadãos avaliar os seus resultados e apoiá-los ou resistir-lhes. Mas, para isso, é preciso definir o âmbito das transformações em curso ou planeadas. Identifico três tipos de medidas. O Tipo 1 (modernização) consiste no vasto programa de simplificação da AP (empresa na hora, marca na hora, cartão do cidadão, etc.), assente no funcionamento em rede e transversalizado dos serviços, tornado possível pelas novas tecnologias de informação e de comunicação, e numa nova filosofia de relacionamento com os cidadãos. As siglas falam por si: UCMA (Unidade de Coordenação da Modernização Administrativa); PSAL (Plano de Simplificação Administrativa e Legislativa); PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado). O Tipo 2 (reordenamento territorial) consiste na eliminação ou reestruturação de serviços públicos em função das transformações territoriais por que está a passar o país, nomeadamente, a desertificação do interior e a densificação do litoral. Está em curso nos serviços desconcentrados da AP central, no Serviço Nacional de Saúde, no sistema educativo e é previsível que venha a ocorrer também no sistema judicial. O Tipo 3 (privatização) consiste na privatização dos serviços públicos, a qual pode ocorrer de múltiplas formas: privatização total, privatização parcial, privatização da gestão, formas mistas de provisão directa e subcontratação. Está em curso, sobretudo, na área da saúde e da segurança social.
Numa sociedade democrática, o critério fundamental para avaliar a eficiência e a racionalidade da reforma da AP e do Estado é o seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos. A reforma será progressista se promover esses direitos. Para isso, terá de ser uma reforma de soma positiva: com ela, tanto ganham os cidadãos como o Estado. Ao contrário, será uma reforma conservadora se puser em causa os direitos dos cidadãos. E assim sucederá se for de soma-zero, se os ganhos do Estado se traduzirem em perdas para os cidadãos. A eficiência assentará sempre num cálculo de custo e benefício, mas tudo depende de como se define o custo e o benefício. O empresário privado define um e outro a pensar em si. Se o Estado agir assim, os benefícios que obtiver tenderão a ser custos para os cidadãos. Por sua vez, a racionalização de serviços pode ser de dois tipos: ou toma em conta as condições vigentes, que considera justas e, por isso, procura intensificá-las racionalmente; ou, pelo contrário, considera injustas as condições vigentes e tenta invertê-las racionalmente.
É à luz destes critérios que devemos analisar os três tipos de reforma em curso. Uma análise atenta deles mostra que eles convergem no uso dos conceitos-chave de eficiência e racionalização e no recurso à lógica empresarial e gerencial própria do sector privado, mas que diferem em tudo o mais. O tipo 1 (modernização) é uma reforma de soma positiva e, por isso, tem todas as condições para ser considerada progressista. O tipo 2 (reordenamento territorial) só será progressista em condições muito exigentes. Em termos de eficiência, os benefícios para o orçamento de Estado no curto prazo devem ser contrapostos aos custos para as famílias afectadas pelo encerramento dos serviços e aos custos para o país decorrentes da concentração da população no litoral e da desertificação do interior (incluindo o aumento dos incêndios florestais). Em termos de racionalidade, é preciso partir da ideia de que as assimetrias regionais são injustas. Aliás, não reconhecê-lo é uma hipocrisia, já que é para as eliminar que o Estado continua a reclamar os fundos de coesão da Europa. O tipo 2 só será progressista se serviços e acessibilidades de tipo novo garantirem os direitos dos cidadãos. As reformas do tipo 3 (privatização) tendem a ser conservadoras, sobretudo numa sociedade tão desigual quanto a nossa: a transformação de cidadãos em consumidores tenderá a ser um factor de exclusão.
À luz desta análise, é possível explicar porque as reformas de tipo 1 têm sido tão mediatizadas. O objectivo é que o brilho delas faça esquecer os custos para os cidadãos decorrentes das reformas do tipo 2 e, sobretudo, das do tipo 3.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos