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01-01-2017        Le Monde Diplomatique

Os acidentes de trabalho são um fenómeno social traumático e por vezes incapacitante, uma manifestação da violência e da vulnerabilidade social a que o trabalho expõe os trabalhadores. A sua realidade e a vivência das consequências por parte de trabalhadores e famílias encerram em si a necessidade de proteção jurídica[i] e justificaram o desenvolvimento, por um lado, de normas de segurança, higiene e saúde no local de trabalho com o intuito de prevenir a ocorrência de acidentes e, por outro, a criação de sistemas de reparação dos danos.

O direito à reparação, enquanto proteção jurídica dos trabalhadores sinistrados, e o conceito socio-jurídico de acidente de trabalho surgiram pela primeira vez com a sociedade industrial e com o crescente uso da máquina e marcaram o nascimento do direito do trabalho. Os fundamentos histórico-jurídicos da reparação, ainda que reconheçam que, no decorrer do seu trabalho, o trabalhador não arrisca apenas o seu património, mas também o seu corpo e a sua vida, repartem-se entre o restabelecimento da saúde e da capacidade de trabalho ou ganho do sinistrado e a sua recuperação para a vida ativa e a compensação do dano, traduzido num determinado grau de incapacidade para o trabalho. Por outras palavras, o direito à reparação dos acidentes de trabalho, marcado pela relevação do corpo como ponto de impacto do trabalho, fundamenta-se numa definição jurídica de acidente de trabalho circunscrita às noções de espaço e tempo de trabalho e tipologia do dano, delimitando as consequências reparáveis à dimensão do dano físico e à integridade económica ou produtiva do trabalhador.

Em Portugal, a reparação dos acidentes de trabalho surgiu em 1913[ii], coincidindo com as primeiras iniciativas no processo de constituição do Estado-providência e respondendo a uma total ausência de proteção social da classe trabalhadora. Todavia, esta proteção, baseada no princípio do risco profissional e na responsabilidade por parte das entidades empregadoras era limitada, já que se aplicava apenas a algumas atividades industriais e aos acidentes causados pelas máquinas.

A generalização da proteção dos trabalhadores sinistrados acaba por acontecer ainda no período da I República, em 1919, com a publicação de legislação específica sobre os seguros sociais obrigatórios. Em concreto, o seguro social contra desastres no trabalho[iii], assim denominado inicialmente, estendeu a aplicação do direito à reparação a todas as atividades profissionais e estabeleceu a obrigatoriedade do seguro, facto que contribuiu para o início do desenvolvimento do ramo segurador em Portugal. Contudo, esta obrigatoriedade assumiu uma natureza indireta, não só porque eram poucas as seguradoras certificadas em Portugal, mas porque as empresas com menos de cinco trabalhadores estavam excluídas desta obrigatoriedade.

Em 1936, a Lei n.º 1942, de 27 de julho substitui o princípio do risco profissional pelo conceito de risco económico ou de autoridade. Esta mudança veio alargar o direito à reparação às doenças profissionais e ampliar o conceito de acidente de trabalho, que passou a incluir situações onde o trabalhador executasse tarefas por ordem da entidade patronal, mas manteve o carácter facultativo do seguro. Este regime jurídico teve a mais longa vigência, mantendo-se em vigor, com alguns ajustes e atualizações, por mais de trinta anos. Foi substituído em 1965 pela Lei n.º 2127, de 3 de agosto, conhecida como a Lei de Bases dos Acidentes de Trabalho. Considerada como a primeira lei estruturante do modelo reparatório da sinistralidade laboral em Portugal, consolidou a teoria do risco económico ou de autoridade e determinou, finalmente, a transferência obrigatória da cobertura do risco para empresas seguradoras. Mas não foram estas as suas maiores inovações. A principal novidade deste diploma centrou-se no alargamento do conceito de responsabilidade e do âmbito de acidentes de trabalho, ao incluir os acidentes in itinere, ou de trajeto.

A evolução da realidade socioprofissional, o desenvolvimento de legislação complementar e da jurisprudência e a revisão da Constituição da Republica Portuguesa, que passou a prever no seu artigo 59.º a “assistência e justa reparação a vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional”, conduziu, na viragem do século XX, à publicação da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro[iv], também designada de Lei dos Acidentes de Trabalho. Esta nova lei, apesar de não introduzir grandes alterações ao anterior modelo de reparação, apresentou melhorias nas prestações conferidas aos sinistrados, procurando garantir o equilíbrio entre entidades empregadoras, setor segurador e trabalhadores vítimas.

Em janeiro de 2010 data de entrada em vigora da Lei.º 98/2009, de 4 de setembro, um novo modelo foi definido. Ainda que se aplique somente aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor são significativas as mudanças na filosofia reparatória dos acidentes de trabalho. A exigência aos empregadores da reintegração profissional dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, a adaptabilidade e readaptação do local de trabalho e respetivos acessos, sempre que o grau de incapacidade os impossibilite de exercerem as suas anteriores funções, a formação profissional em áreas que permitam que o trabalhador incapacitado possa continuar a trabalhar em novas funções e o apoio psicoterapêutico à família do sinistrado, constituem-se como os grandes avanços. Estas alterações não só estabelecem uma conceção mais alargada de reparação como assumem que as consequências do acidente não afetam apenas o trabalhador, mas se estendem à sua família.

A história do direito à reparação em Portugal mostra que estamos perante uma problemática que sofreu, ao longo de mais de cem anos, uma evolução que se acredita não acabada. Se por força das suas origens a responsabilidade pelos danos decorrentes de um acidente de trabalho continua a reparar apenas a capacidade produtiva do trabalhador, concebendo-o como um mero fator de produção, o conhecimento das consequências vividas do acidente[v] mostram que a desvalorização social e o estigma associados a uma incapacidade enfatizam a necessidade de repensar o direito à reparação em função das expectativas e das práticas daqueles que fazem uso deste direito e ao qual se submetem. Por sua vez, o atual regime de reparação dos acidentes de trabalho ao contemplar a reabilitação e reintegração profissional do sinistrado e o apoio psicoterapêutico à sua família abre a porta para uma discussão mais alargada sobre o reconhecimento da dignidade e do valor do trabalhador que vá além do seu valor económico. Para tal, torna-se urgente uma discussão pública e política sobre ao direito à reparação enquanto princípio e mecanismo de dignidade e fonte de justiça social.



[i] Cf. Lima, Teresa Maneca (2015) O que a Lei não vê e o trabalhador sente. O modelo de reparação dos acidentes de trabalho em Portugal. Tese de Doutoramento em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI. Universidade de Coimbra.

[ii] Lei n.º 83, de 24 de julho, regulamentada pelos Decretos n.º 182, de 18 de outubro, e n.º 183, de 24 de outubro.

[iii] Decreto n.º 5637, de 10 de maio.

[iv] Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril.

[v] Cf. Lima, Teresa Maneca (2012) “Acidentes de trabalho e experiências de sinistralidade: desafios à reparação e proteção social”, in Neto, Hernani V.; Areosa, João; Arezes, Pedro (eds.) Impacto social dos acidentes de trabalho. Vila do Conde: Civeri Publishing, 323-344.


 
 
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Teresa Maneca Lima



 
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