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29-03-2007        Visão
Assiste-se hoje a uma certa demonização do poder local, o que contradiz a ideia da nobre tradição de autonomia municipal na governação do país. Há várias razões para este fenómeno, mas é evidente que para ele têm contribuído as suspeitas e acusações de negócios escuros, corrupção, abuso de poder e trocas de influência em algumas autarquias.
Este é o lado escuro do poder local. Mas há o lado claro, e é desse que pretendo dar testemunho. Acabo de participar em São Brás de Alportel no Primeiro Encontro Nacional sobre Orçamento Participativo, organizado pela autarquia e pela Associação In Loco. Para além de um público jovem envolvido no desenvolvimento local, participaram no Encontro representantes das autarquias que hoje praticam alguma forma de orçamento participativo (OP): onze municípios (Aljezur, Alcochete, Aljustrel, Alvito, Avis, Faro, Palmela, Santiago do Cacém, Sesimbra, São Brás de Alportel e Tomar); e três freguesias: Carnide (Lisboa), Agualva (Sintra) e Castelo (Sesimbra). O OP é uma forma de gestão partilhada dos municípios em que para além dos órgãos autárquicos eleitos, participam os munícipes, individualmente e através de associações da sociedade civil. As decisões sobre os investimentos autárquicos anuais e sobre os planos directores municipais (PDMs), decorrem de processos estruturados de consulta e negociação alargada entre os autarcas e os munícipes, entre munícipes de diferentes regiões do município, ou com interesses sociais e culturais diferentes. A participação dos cidadãos pode ser consultiva ou, nas formas mais avançadas de OP, deliberativa. O OP existe hoje em cerca de 1200 municípios da América Latina e em mais de 100 municípios da Europa. Ainda que originário de governos municipais de esquerda ou de centro-esquerda, o OP está hoje a disseminar-se em outros quadrantes políticos, sendo várias as experiências de OP em autarquias de centro-direita, por exemplo, na Alemanha. O OP consubstancia uma relação virtuosa entre a democracia representativa e a democracia participativa e visa tornar o governo autárquico mais transparente, socialmente mais justo e politicamente mais próximo dos cidadãos. Contra ele investem todos aqueles para quem a democracia participativa é anátema e os lobbies da construção civil que têm hoje um poder insondável sobre as decisões municipais, inclusive ao nível dos PDMs (uma situação que parece ser clamorosa em Coimbra).
As experiências de OP no nosso país são ainda muito tímidas. Pelo seu âmbito e pela sua visão, destaca-se a do município de Palmela. São uma gota no oceano e, por agora, reflectem a geografia dualista do nosso país. Mas vejo-os como sementes de esperança para o aprofundamento da nossa democracia. Dão sinais aos cidadãos de que, pelo menos a nível local, é possível vencer a dupla patologia que assola hoje os regimes democráticos: a patologia da representação ("não me sinto representado pelo meu representante") e a patologia da participação ("não participo porque o meu voto não conta").

 
 
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Boaventura de Sousa Santos