Centro de Estudos Sociais
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12-04-2007        Visão
Quando, em 1537, decretou na bula Sublimis Deus que os índios tinham alma, o Papa Paulo III abriu um longo processo histórico que se encerrou com a eleição, em 2005, do primeiro índio presidente de um país, Evo Morales, na Bolívia. Com 62% de população indígena, a Bolívia é um dos países da América Latina mais ricos em recursos naturais e um dos mais pobres. Este contraste, que, aliás, caracteriza muitos outros países do Sul global, bastaria para fazer um juízo sobre o "modelo de desenvolvimento" que o colonialismo e o capitalismo impuseram à grande maioria da população do mundo nos últimos cinco séculos. Mas, melhor que juízos éticos, falam as resistências e as alternativas de que novos actores sociais e novas práticas transformadoras vão dando testemunho um pouco por toda a parte. Aproveitando a oportunidade histórica que lhe foi dada pelo imperialismo norte-americano, ao concentrar-se, na última década, nas riquezas petrolíferas do Médio Oriente, a América Latina está hoje na vanguarda da reinvenção do Estado, da democracia e da esquerda, e a Bolívia é talvez o país mais avançado neste domínio. Não deixa de ser sintomático que sejam os excluídos dos excluídos, os povos indígenas, a protagonizar este processo.
Depois de duas semanas de trabalho intenso com os líderes dos movimentos indígenas, de camponeses, de mulheres e de deputados da Assembleia Constituinte apostados na refundação do Estado boliviano, chego à conclusão de que o grande problema da esquerda europeia e norte-americana reside em continuar a pensar em termos de teorias que foram desenvolvidas em seis países do Norte global (Inglaterra, Alemanha, França, Itália, União Soviética e EUA), enquanto as práticas de transformação social mais inovadoras estão a ocorrer no Sul global. Esta discrepância, que produz uma cegueira arrogante e uma estagnação disfarçada de complexidade, vai durar muito tempo, enquanto a ideia de progresso continuar a impedir os países mais desenvolvidos de aprender com os países menos desenvolvidos. O seu custo maior é impossibilitar a emergência de formas não colonialistas de solidariedade entre as forças progressistas do Sul e do Norte. Como me dizia uma grande líder indígena, sempre olhámos para a Europa como uma possível alternativa, mas, com tristeza, verificamos que já nem sequer no modelo social europeu acreditam; pelo que vemos, a diferença entre a direita e a esquerda europeias é a opção pela privatização mais ou menos selvagem dos serviços públicos e surpreende que não vejam uma relação entre tal política e o aumento da criminalidade, da desigualdade social, da corrupção e do racismo.
O processo boliviano é frágil e de desfecho incerto. Em Santa Cruz de la Sierra, centro do capitalismo agrário, vi deputados constituintes indígenas serem insultados e agredidos por grupos de extrema direita. O que me impressionou na atitude dos deputados foi que, em contraste com a esquerda europeia hegemónica, são militantes de causas, não são funcionários de coisas.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos