Centro de Estudos Sociais
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10-05-2007        Visão
A intervenção judicial envolvendo figuras políticas pode constituir uma de duas situações: um conflito jurídico de que resultam ou não consequências políticas; um conflito político que em certo momento do seu desenvolvimento assume um componente jurídico. Só este último caso constitui o que designo por judicialização da política: a utilização dos tribunais para influir no desenrolar de um conflito político cuja resolução pela via política não parece possível ou desejável. Na primeira situação, o conflito jurídico é a causa e o conflito político, a consequência; na segunda situação, dá-se o inverso.
Em qual das duas situações se encaixa a queixa-crime apresentada pelo advogado de Carlos Silvino (o "Bibi") no processo Casa Pia contra o primeiro-ministro e a consequente mobilização do Ministério Público? Penso que se trata de judicialização da política. Qual será então o conflito político que desencadeia o conflito jurídico? Em princípio, um governo que detém a maioria absoluta no parlamento tem condições para resolver os conflitos políticos em termos políticos. Só assim não será em duas situações: quando há divisões internas dentro do partido do governo; ou quando a oposição se sente pressionada para procurar eleições antecipadas, quer para inverter decisões políticas já tomadas, quer para impedir que outras sejam tomadas. As duas situações podem existir complementarmente e potenciarem-se uma à outra na produção de objectivos políticos convergentes.
Parece estar em curso um processo de "character assassination" do primeiro-ministro. Estão em causa hipoteticamente medidas políticas já tomadas. As posições que o Estado ainda detém no capital financeiro e em indústrias estratégicas confere-lhe alguma autonomia para decidir entre fracções do capital a favorecer. Não se trata de autonomia em relação ao capital global em geral, mas tão-só em relação às suas diferentes fracções que, sendo todas globalizadas, se apresentam umas como nacionalistas, outras, como ibéricas, etc. As fracções desfavorecidas têm suficiente poder político e mediático para reagir e tentar inverter a situação. Reside, aliás, aqui o factor principal das ameaças à liberdade dos jornalistas nas sociedades democráticas desenvolvidas. A decisão sobre o que se publica, quando e como se publica, e os sistemas de censura interna e de auto-censura são monitorados em função dos interesses económicos dos grupos que controlam os grande media. Curiosamente, este factor é totalmente omitido nas recentes discussões sobre a liberdade dos jornalistas.
Nestes casos, é decisivo que nem todos os intervenientes no conflito político-jurídico tenham consciência das suas últimas causas, até porque, quando intervêm os tribunais, a boa gestão da sua intervenção exige que o conflito principal seja disfarçado pelo conflito secundário. Por sua vez, o sistema judicial tem uma capacidade variável para resistir à judicialização da política. No caso em análise, essa capacidade tende a ser grande porque o que tem a averiguar é marginal e remoto em relação ao cerne do conflito político. A conversão do que é marginal e remoto em central e próximo já será um efeito autónomo da intervenção político-mediática.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos