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27-09-2007        Visão
Acabo de participar, como conferencista, no 6º Festival do Lixo e Cidadania realizado em Belo Horizonte, por iniciativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Uma experiência estranha e riquíssima. Estranha, porque juntou o mais desprezível (o lixo) com o mais precioso (a cidadania) num tipo de evento (festival) a que associamos celebração e alegria. Riquíssima, porque aprendi ou reaprendi incomparavelmente mais do que ensinei.
Aprendi que os seres humanos, mesmo os mais excluídos e nas condições mais indignas – aqueles para quem o nosso lixo é um luxo e o endereço é um viaduto ou uma soleira de porta – não desistem de lutar por uma vida digna, assente na reivindicação de direitos de cidadania que, apesar de impunemente desrespeitados, lhes dão notícia da sua humanidade. São milhares de sombras móveis coladas a carroças desengonçadas que percorrem as cidades, atrapalhando os postais ilustrados e a indústria turística, populações descartáveis apesar de ganharem o seu sustento colectando para reciclagem o que descartamos como papel velho, vidro e plástico usados ou sucata.
Aprendi que muitas das lutas mais exigentes pela inclusão social exigem formas de organização e mobilização autónomas, já que as agendas dos partidos não contemplam as aspirações dos mais excluídos e os sindicados não reconhecem formas de trabalho que extravasam do modelo do capitalismo industrial. O MNCR agrega hoje centenas de organizações e cooperativas de que são membros cerca de 300.000 catadores. Por via da organização e mobilização resignificaram a sua auto estima e identidade, passando de miseráveis comedores de lixo a uma ocupação profissional, a de "catador de material reciclável", reconhecida pelo Código Brasileiro de Ocupações sob o número 5192. São, pois, recicladores que reciclaram a sua própria vida. Aprendi que a sociedade de consumo em que vivemos – baseada na incessante fabricação de necessidades que não temos e no endividamento extremo que nos impede de satisfazer as que verdadeiramente temos – despreza o saber ecológico daqueles que transformam os restos do consumo em consumo sustentável de restos. Calcula-se que o mundo produz anualmente 1,84 biliões de toneladas de lixo por ano, a maior parte dele resíduos sólidos que, por falta de reaproveitamento, poluem a atmosfera e contaminam o solo e as águas subterrâneas. Nem mesmo os movimentos ambientalistas dos países com milhares de catadores de lixo se deram conta destes seus aliados naturais, certamente não pertencentes, como eles, à classe média e muito menos portadores de discursos que escondem com a beleza das palavras a sujidade do mundo.
Aprendi ainda que há uma alternativa à economia do egoísmo – que o capitalismo transformou no modo natural de fazer, ter e ser –, a economia do altruísmo, das cooperativas e das organizações económicas populares onde a rentabilidade está ao serviço do bem estar e se inclui, dentro do tempo de trabalho, o tempo de alfabetização e de formação profissional, a ginástica para aliviar o stress muscular da especialização (separação, triagem e enfardamento de sucata) e a discussão sobre violações de direitos humanos no trabalho e em casa, nomeadamente a descriminação sexual e a violência doméstica. Neste domínio, há que registar a solidariedade prestada pelos serviços de extensão de universidades públicas que finalmente se deram conta que o seu futuro passa por um novo contrato social, não, como antes, vinculado às elites económicas, mas antes solidário com as classes populares e os cidadãos impotentes para fazer valer os seus direitos ante profissionais ininteligíveis e secretarias labirínticas.
Afinal, talvez eu já soubesse tudo isto. Apenas fiquei a saber melhor que os excluídos não precisam que lhes ensinem o que é uma vida digna. Precisam apenas de aliados que possam dar testemunho deles e, com isso, ampliar a sua voz e a sua luta. Suspeito que foi por isso que me convidaram.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos