Num período em que os governos nacionais se mostram reféns do modelo de (des)regulação neoliberal e da pequena elite financeira que causou a profunda crise económica e social em que nos encontramos, o próximo acto eleitoral bem poderia ser a vez da Europa. Pelo seu voto, os cidadãos europeus teriam a oportunidade de se manifestar a favor de uma outra política e de um outro modelo económico e social. Esta oportunidade pareceria particularmente imperdível para os portugueses, em cuja memória está bem vincada a profunda transformação, em larga medida positiva, por que passou a sociedade portuguesa em resultado da adesão à União Europeia. Porque não é assim? Porque é que as próximas eleições, longe de serem a vez da Europa, têm lugar em vez da Europa? Porque é que, em vez da Europa, o que vai a votos é tão só a resignação ou a revolta dos cidadãos europeus perante as políticas dos governos nacionais? Porque é que o provável alto grau de abstenção será uma mistura envenenada e paradoxal de altos níveis de resignação e de altos níveis de revolta?
A resposta é complexa mas os seus traços principais são os seguintes. A UE é hoje um fantasma da Europa. Existe em vez da Europa em que os cidadãos europeus acreditavam e para ocultar a verdadeira dimensão da "substituição";. Um exemplo apenas. A UE foi um dos mais fascinantes processos plurinacionais contemporâneos, inspirado numa lógica de inclusão social transnacional, assente num círculo virtuoso entre altos níveis de competitividade e de protecção social, portadora de uma concepção avançada de cidadania em cujo cerne se alojavam os direitos económicos e sociais dos trabalhadores. Foi este, em suma, o célebre modelo social europeu.
Nos últimos quinze anos, este modelo foi minado por dentro e por fora, através de uma insidiosa convergência entre o neoliberalismo imposto pelos EUA e as elites económicas e financeiras europeias, desejosas de se verem livres da regulação estatal forte e dos custos das políticas sociais. Paulatinamente, os cidadãos europeus foram sendo "convencidos"; de que o Estado era um problema e que o mercado era a solução, que a segurança social era insustentável, que a educação e a saúde públicas eram cerceadoras da autonomia do cidadão-consumidor, que os imigrantes eram um fardo e um factor de insegurança, que, no plano internacional, a Europa devia deixar de ser uma alternativa à globalização predadora protagonizada pelos EUA para ser um seu parceiro incondicional. Tudo isto se foi convertendo na obsessão pela contenção do défice orçamental, condensada no Pacto de Estabilidade e Crescimento que nos legou uma cultura de travagem da economia real e de destravada aceleração da economia de casino da alta finança. Foram estas políticas europeias que geraram a crise e que, ao converterem os governos nacionais em mini-europas, os deixaram com pouca margem de manobra para reagir quando a crise estalou.
Nos últimos anos, Durão Barroso foi a imagem mais fársica desta Europa-em-vez-da-Europa e, por isso, o Plano Barroso para enfrentar a crise não podia deixar de ser um embuste: dos 400.000 milhões de euros anunciados para ajudas às políticas de resposta só 35.000 milhões eram dinheiro fresco; o resto era dinheiro já afectado aos planos nacionais. Podem os cidadãos europeus acreditar numa Europa que, ao manter Durão Barroso, mostra mais dificuldades em se libertar da herança Bush que os próprios EUA?
Nestas eleições, os cidadãos vão ter de esperar pela vez da Europa. A Europa da solidariedade e da interculturalidade; da democracia de alta intensidade; do controle público e participativo dos sectores-chave, como o sector financeiro e da energia; da defesa; do direito ao ambiente, à saúde e à educação e do direito ao trabalho com direitos; da política de imigração anti-racista; da política de investigação e de desenvolvimento tecnológico ao serviço dos cidadãos; da política externa assente na cooperação fraterna com os países do Sul global e na recusa da imposição unilateral e da guerra.