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02-10-2016        Jornal de Notícias

Contra os “jornais de referência” nos Estados Unidos da América (EUA), contra a maioria dos opinadores da televisão, Donald Trump – ser egoísta, racista e mentiroso – vai levando a sua avante. Pode ou não ganhar a cadeira de Presidente, mas a simples possibilidade de isso poder acontecer assusta e leva-nos a perguntar, “como é possível”?

Ficamos a pensar sobre o estado de informação e análise política em que se encontra a sociedade americana, mas acordemos perante uma realidade ainda mais dura: Trump não é apenas um fenómeno tipicamente americano. Por toda a Europa, especialmente a Norte, mas ainda em paragens mais remotas, há movimentos de extrema-direita, por detrás de múltiplas encenações de causas, em rápida e perigosa ascensão. O que explica essa deslocação das “preferências” dos eleitorados? A resposta é complexa e difícil.

O paralelismo entre o tempo que vivemos – de sobreposição da liberdade de circulação de capitais a todas as outras liberdades e direitos – e outros períodos históricos marcados por movimentos semelhantes, como o que precedeu a I Guerra Mundial e a Grande Depressão é, seguramente, um dos fatores que nos deve fazer refletir.

Agora, como nesse tempo, predomina a convicção de que os Estados nacionais perderam os instrumentos que garantiam o primado da política e da deliberação democrática sobre a economia. Outrora, também nos afirmavam que os capitais se haviam libertado de amarras nacionais e adquirido um poder que lhes permitia impor aos governos o que deviam e não deviam fazer para os cativar ou atrair.

Já no final do século XIX e início do século XX nos diziam que os mercados exigiam mais “competitividade” e que essa competitividade passava pela redução dos salários e dos direitos dos trabalhadores assalariados. Dessa fuga para a “competitividade” e aproveitamento de negócios, numa espiral descendente de desvalorização interna em todos os países, resultou então, como agora está a acontecer, uma desproporcionada concentração da riqueza no topo da pirâmide social, e um generalizado sentimento de insegurança e perda de confiança no futuro na maioria da população. No debate entre Trump e Hilary Clinton, quando de forma mais ou menos direta foi puxado o tema da economia, Trump só usava uma palavra: “negócios”. Quem esteve atento percecionou o vazio social e humano desse seu conceito. E reteve, por certo, o orgulho de Trump por não pagar impostos.

Naquele tempo como hoje o poder político e os políticos, transformados em meros mercenários de poderes económicos e financeiros supranacionais anónimos, ou conformados com ajustamentos às “novas realidades”, descredibilizaram-se, descredibilizando a própria democracia. Os dramas vividos na I e depois na II Guerra Mundial, despertaram a Humanidade a ponto de ser possível, em 1944, estabelecer, em Filadelfia, que “o trabalho não é uma mercadoria” e pouco depois elaborar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje estes compromissos, que deviam ser ainda mais universais e multiculturais, são espezinhados e a barbárie avança.

É sob o pano de fundo da antipolítica e da insegurança generalizada, que emergem novos atores com ADN fascista, como os que conhecemos no passado e agora reencontramos em figuras como Trump. Eles prometem segurança e autoridade contra “o sistema” – uma nebulosa imprecisa que designa interesses poderosos e ocultos – e contra inimigos internos e externos, reais ou imaginários. A desgraça deste cenário é o facto de os Trump dos EUA e de outras paragens, constituírem a expressão mais profunda da podridão que infetou a sociedade em que vivemos. Na sua ascensão serviram-se e servem-se das contradições e cedências de democratas vazios ou inconsequentes.

Sabemos onde nos podem levar as suas promessas. A retórica da excecionalidade, quando não da superioridade racial, é sempre um prenúncio de violência. E a economia não é sinónimo de “negócios”. Temos de saber responder-lhes e, se a história nos ensina algo, a resposta não pode deixar de passar pela sobreposição da política democrática à economia, num quadro nacional e internacional em que a liberdade dos capitais não se sobreponha a todas as outras liberdades e direitos.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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