A julgar pelos comentários que se têm visto na TV, ouvido na rádio e se podem ler em vários jornais, há por aí quem sofra horrores quando lhe é arrancado um só cabelo. Na realidade, para quem dispõe de rendimento suficiente para adquirir imobiliário com valor tributário - em regra muito acima do valor de mercado - superior a um milhão de euros, o hipotético imposto que surgiu em debate público não representa mais do que um cabelo numa hirsuta cabeleira. Então, porquê tamanha agressividade em defesa dos 8600 portugueses (cidadãos e empresas?) que poderão ser abrangidos?
Dizem-nos que esse imobiliário é adquirido com poupança, que foi rendimento do trabalho já tributado que lhe deu origem. Que se trata de pessoas que souberam poupar, que honesta e legalmente constituíram as suas fortunas. Ora, estamos numa sociedade onde o fundamental do grande roubo é legal, a ganância desmedida marca o comportamento dos muito ricos, a especulação financeira é fonte de muito enriquecimento.
Calcule o leitor qual seria o salário mensal necessário para poupar, em 40 anos de vida ativa, mais de um milhão de euros a investir em imobiliário. Tenha presente que 50% dos portugueses ganham até 780 euros mensais ilíquidos, que o salário médio ilíquido é de cerca de 1000 euros, que o direito a alimentação digna, à educação, à saúde, à cultura, ao exercício da cidadania, ao lazer, custa dinheiro às pessoas.
Não! Imobiliário nesse valor não é adquirido com salários normais. Pode sê-lo com salários muito elevados, com salários anormais como os que vemos praticar nos conselhos de administração de bancos e grandes empresas, pode sê-lo com heranças (escassamente tributadas), pode sê-lo com rendimentos do capital que pagam muito menos impostos que o trabalho.
Por que lhes dói assim tanto a hipótese de aquele imposto ser realidade? Porque estão habituados a pagar poucos impostos? Ou será que o que lhes dói não é o pequeno abalo na carteira, mas antes o questionamento de privilégios - neste caso o privilégio de pagar baixos impostos? Pode ser ainda por este processo poder desencadear melhor perceção das camuflagens de negócios e de fuga para paraísos fiscais. Acima de tudo reagem porque, com esta polémica e com estudos que vão surgindo na sociedade portuguesa, se vai tornando claro a possibilidade de políticas alternativas à "inevitabilidade" de cortar sempre nos salários, nas pensões, nos direitos fundamentais e nas condições de vida dos mais frágeis.
No meio do argumentário surge a ideia de que os rendimentos do capital não devem ser tributados. A ideia é simples: se forem tributados fogem, logo, para os cativar é preciso descer a taxa de imposto. Dizem, o país deve ser competitivo do ponto de vista fiscal, como a Irlanda ou a Holanda. A ideia é simples, mas não muito inteligente: se todos fizermos como a Irlanda ou a Holanda, não só a Irlanda e a Holanda deixam de atrair capitais, como todos os outros deixarão de beneficiar a partir do momento em que as taxas, de redução em redução chegarem a zero. Essa trapaça da competitividade como valor total, a que o Papa Francisco chama a "economia que mata" tem um reverso bem duro, que é o do descarte do comum dos seres humanos.
Choca ver um conjunto de palradores de serviço - colocados em posições determinantes na Comunicação Social pelo centrão político e económico - tão irritados com esta injustiça face aos ricos. Eles impregnaram até à medula a estigmatização dos trabalhadores e dos mais pobres. Não têm vergonha e querem a todo o custo justificar os disparates que andaram a defender reclamando a austeridade purificadora.
É preciso poupar. Fui ensinado nesse princípio e valorizo-o, como aliás faz a generalidade dos portugueses, sendo de Esquerda ou de Direita. Há o direito à acumulação de riqueza, mas também à sua justa repartição quando é criada, com salários dignos e criação de emprego. E com a aplicação do princípio de todos pagarem impostos (em sistema progressivo) de acordo com a riqueza que possuem.
O dinheiro ganho no trabalho não é menos digno que qualquer outro e o combate à pobreza só será efetivo se estiver presente em todas as políticas.