Os gritos de guerra e as encenações de lutas corporais, assim como o constante recurso à linguagem brejeira e obscena são mais algumas similitudes entre os jogos de caserna e a praxe estudantil na sua versão mais primária.
É quase sempre devido a acidentes lamentáveis (ou mesmo trágicos, como o caso mais recente dos Comandos) que a sociedade acorda para as perversidades do poder social inerentes a ritualismos de coletividades fechadas e guiadas por códigos rígidos e arcaicos. Aconteceu agora, como ocorreu no passado recente com acidentes relacionados com as praxes estudantis.
De um modo geral não duvido que os rituais são marcadores importantes da vida das instituições ou das coletividades, e não está em causa negar-lhes essa importante função. Em organizações ou comunidades de natureza diversa eles são os garantes da coesão e da reprodução do sistema normativo em que se inserem. Acresce que o ritualismo é tanto mais exigente e violento quanto se trate de um corpo fechado e distintivo. A dureza da prova deve ser proporcional aos níveis de adesão e entrega ao novo coletivo de chegada por parte do caloiro ou do recruta e, nessa medida, a normatividade que aí impera não reconhece valores democráticos. Pelo contrário, o desígnio subjacente a esta lógica é a demonstração de força e de poder. E é nessa medida que se procura transcender os limites da submissão porque aí reside o principal barómetro da força moral e dedicação do candidato.
Sabemos, por outro lado, que o poder é sempre uma relação social assimétrica em que uma das partes pode determinar os comportamentos das outras, mas isso só se concretiza perante o assentimento ou submissão da parte mais fraca (podendo essa relação ser fundada na tradição, na hierarquia formal, na coerção ou no “carisma” do elo mais forte; ou um misto de tudo isso). Não se trata aqui daquele tipo de sistemas em que o indivíduo é involuntariamente colocado numa sociedade de tipo totalitário.
Nos Comandos, tal como na praxe estudantil, existem hierarquias preestabelecidas onde se desenha o lugar de cada um na relação de poder. Mas se o princípio disciplinar é conhecido à priori, também não deixa de ser significativo que a adesão seja voluntária e não compulsiva (embora isso seja sociologicamente controverso), um aspeto que, à partida, determina a predisposição do novato para se sujeitar a um jogo que sabe ser duro. Assim, apesar das hierarquias estruturais pré-existentes definirem a relação chefe/ subordinado, a atitude de anuência do “oprimido” torna-se um ingrediente fundamental do poder despótico (o conhecido princípio bem expresso na frase de Steve Biko de que “a melhor arma do opressor é a mente do oprimido”). Neste sentido, pode dizer-se que não há apenas vítimas e carrascos; antes, de uma relação ambivalente onde o despotismo se confunde com o paternalismo.
Sendo, como referi, os fenómenos em questão tão distintos, não se trata de os colocar no mesmo plano (muito menos de perseguir ou “julgar” os culpados), mas sim de um questionamento sobre o que é que leva um indivíduo, perante o grupo e a sua liderança, a transcender os seus próprios limites? Até que ponto e que fatores podem levar o indivíduo a uma identificação sem limites e a uma entrega abnegada, ao ponto de se anular perante as ordens de um “chefe” (pondo até em risco a própria vida)? O que é que leva estudantes adultos a gritar pelo direito a serem humilhados? Não haverá aqui ingredientes preocupantes que podem favorecer o ressurgir de uma sociedade patrulhada?
Nos Comandos, a intensidade do treino visa transformar a própria coação em dever legítimo: “o soldado comando sente-se compensado e até vaidoso pela dureza, risco e humilhações por que passou durante a recruta. O seu ego sai reforçado e é visível o orgulho que sente no aprumo da farda, na postura do corpo e no brilho do ‘crachat’ de comando”. O código de honra da corporação estabelece que o bom soldado “está sempre pronto a comandar e disposto a obedecer, não admite a suspeita de haver nos seus superiores a intenção de oprimi-lo ou de, por qualquer forma, o diminuir. Porque é sua constante preocupação agir como verdadeiro «COMANDO», tem nos seus chefes ou comandantes a mais segura confiança e a mais acrisolada fé.” (Código Comando).
A dedicação e entrega do recruta deve reger-se pelos princípios morais do caráter, lealdade, fidelidade, obediência e determinação, consideradas as virtudes inalienáveis de um Comando, capaz de sacrificar tudo em nome da honra e do espírito patriótico, na convicção de que personificam a ideia (formulada por Virgilio, na Eneida) expressa na fórmula “Audaces fortuna juvat” (“A sorte protege os audazes”), o lema do Batalhão de Comandos em Portugal.
No meu percurso militar – em 1974-75 –, embora integrado no exército normal, partilhei o quartel dos comandos, na Amadora, durante cerca de um ano e, desse convívio, recordo bem a “mística” alimentada no seio do grupo por parte desta tropa “de elite”, bem como o seu desprezo pela “tropa fandanga”, como classificavam os menos aprumados, estranhos à elite. Em nome do patriotismo, a atitude estoica na defesa dos seus princípios notava-se na constante invocação das provações a que haviam sido sujeitos na especialidade, onde a bravura e coragem era tanto mais exaltadas quanto maior era o número dos que ficavam pelo caminho sem alcançar a almejada boina vermelha. Num estudo que publiquei em 1990 (“A Tropa de Elite, mitologias e realidades”, Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 22) os militares Comando da Amadora revelaram que os seus lemas mais valorizados eram o patriotismo, a lealdade, a disciplina, etc. Valores estes mais arreigados nos que passaram pela Guerra Colonial, o cenário onde as hierarquias formais se esbatiam em favor da dedicação em nome da Pátria.
Pode dizer-se que, à primeira vista, a praxe estudantil nada tem a ver com esse mundo. E não tem. Sobretudo se considerarmos apenas as modalidades circunscritas à genuína tradição académica, de que a Universidade de Coimbra se orgulha de ser o modelo de referência, e ignorarmos as situações abusivas. Porém, elas existem e têm-se repetido ao longo dos anos. Quem se dê ao trabalho de procurar na Internet vídeos (e existem bastantes) de alguns dos rituais estudantis que proliferam por esses institutos e escolas de ensino superior, em diversas cidades portuguesas, não é difícil encontrar semelhanças, no plano dos rituais iniciáticos e dos exercícios em que os caloiros são envolvidos, com o ethos militarista da tropa especial. Os gritos de guerra, os jogos que implicam submissão, humilhação e respeito reverencial pela hierarquia, a capacidade de sofrimento e o teste para levar os caloiros ao limite são alguns dos traços em comum. Muitos explodem a abandonam, mas a maioria aguenta estoicamente o stress e mais tarde orgulha-se disso. De seguida, seja por convicção e respeito pela tradição, seja simplesmente pelo gozo que retira na humilhação do mais fraco, acaba por perpetuar o mesmo ritual e desse modo alimentar a mesma lógica do poder. A vassalagem perante a autoridade máxima da praxe (o “Dux Veteranorum”), traduzida na expressão “Ave Veteranorum Praxis Turis Te Salutem” (“aqueles que vão ser praxados estão aqui para te saudar”) é supostamente inspirada nos gladiadores romanos quando juravam fidelidade perante César (até à morte). Neste caso, diga-se, a expressão é mais suave, mas como caricatura não deixa de ser reveladora. De resto, em alguns dos sites de grupos mais radicais e mistificadores do ritual da praxe é comum a presença de imagens e ícones apologéticos do despotismo mais abjeto, em alguns casos confundindo-se com a mística de organizações secretas ou, por exemplo, a que germina no seio das claques de futebol.
Tal como o ingresso nos Comandos, a praxe é “voluntária”, mas aqueles que a aceitam têm de se sujeitar às consequências até ao fim. Muito embora se possa dizer que, em face da exigência e dureza da preparação de uma tropa especial, as brincadeiras “pesadas” das praxes não passam de jogos inofensivos, já conheci alguns casos (em pesquisa recente – veja-se livro em publicação, Praxe e Tradições Académicas, editora Francisco Manuel dos Santos) em que arreigados ativistas do espírito praxista evidenciam marcas da experiência passada em corporações militares ou paramilitares. Há quem garanta que as punições com flexões de braços, por exemplo, são uma herança trazida do exército por ex-milicianos que regressaram à Universidade depois da tropa. Os gritos de guerra e as encenações de lutas corporais, assim como o constante recurso à linguagem brejeira e obscena são mais algumas similitudes entre os jogos de caserna e a praxe estudantil na sua versão mais primária.