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30-06-2016        Público

Entre o caos nos mercados financeiros, a possível independência da Escócia e as rebeliões que se avizinham nos dois principais partidos políticos britânicos, pouco se tem falado das razões externas que levaram ao desenlace de quinta-feira. Em particular, pouco se tem falado da culpa de Berlim e de Bruxelas em todo este processo.

A verdade é que muitas das razões que levaram os britânicos a votar out têm a sua origem nas desastrosas medidas adotadas pela União Europeia, em larga medida por pressão da Alemanha, para lidar com a crise financeira que tem vindo a afetar a Europa (sobretudo do Sul) desde 2010. Apesar de os britânicos nunca terem feito parte da zona euro, direta e indiretamente esta questão afetou profundamente o debate sobre o referendo, tendo dado munições ao movimento Leave e retirado argumentos aos que estavam a favor da manutenção do Reino Unido na União Europeia em cinco áreas fundamentais.

Imigração. Nos últimos anos, centenas de milhares de italianos, espanhóis, gregos, portugueses, irlandeses e cipriotas imigraram para o Reino Unido à procura de emprego e de uma vida melhor. Este movimento migratório deu uma visibilidade significativa aos fracassos do projeto europeu e reforçou o argumento do descontrolo dos fluxos migratórios para o Reino Unido. Para muitos britânicos, a União Europeia não só era incapaz de resolver os problemas da zona euro como se recusava a inserir qualquer mecanismo que prevenisse a chegada ilimitada de imigrantes europeus ao Reino Unido.

Democracia. Os britânicos sempre foram críticos da falta de legitimidade democrática da União Europeia. Nesse contexto, casos como a demissão forçada de Silvio Berlusconi em Itália ou a crise política grega e as consequentes chantagens feitas ao Governo grego do Syriza, juntamente com as reuniões à porta fechada do Eurogrupo, só "confirmaram" aquilo que os britânicos suspeitavam relativamente à União Europeia: que se tratava de uma entidade não democrática em larga escala ao serviço dos interesses da Alemanha.

Austeridade. Muitos dos problemas identificados por aqueles que pretendiam a saída do Reino Unido da União Europeia estavam ligados às políticas de austeridade dos governos de David Cameron, que contribuíram para prolongar a recessão económica no país para lá do necessário, cortaram subsídios fundamentais a milhões de pessoas (já de si no limiar da pobreza) e reduziram os custos com os serviços públicos da educação aos serviços locais. A austeridade brutal a que o Reino Unido tem sido sujeito contribuiu para a efetiva descida do nível de vida daqueles que já estavam numa situação frágil. A recuperação económica a que o país tem assistido nos últimos anos atenuou alguns desses impactos, nomeadamente em termos de desemprego, mas não a um nível necessário para colmatar a destruição provocada pelos cortes. Indiretamente, a União Europeia ajudou à consolidação desta agenda de austeridade, não só porque defendeu a mesma receita para os países da zona euro como providenciou ao partido conservador britânico um dos seus principais trunfos de campanha, tanto em 2010 como em 2015: a infindável crise grega. Esta posição dificultou, de forma significativa, a tarefa daqueles que queriam oferecer uma visão progressista do projeto europeu.

Conhecimento. Este foi, em boa medida, um debate marcado por um certo anti-intelectualismo. O atual ministro da Justiça e um dos líderes do movimento Leave, Michael Gove, chegou mesmo a dizer que o público estava farto de peritos. Isto num contexto em que a esmagadora maioria das instituições internacionais, economistas e líderes políticos fora e dentro do país chamavam a atenção para os enormes riscos económicos e financeiros de um "Brexit". Um dos argumentos mais frequentes em resposta aos avisos constantes de uma potencial recessão económica era o de que estes tinham sido os mesmos peritos que nos anos 1990 tinham defendido a entrada do Reino Unido para a zona euro (e, como tal, não havia razão nenhuma para ouvir os seus argumentos). Os sucessivos fracassos da zona euro ajudaram desta forma a reforçar o argumento de que os peritos não são de confiança.

Seria certamente injusto e analiticamente pouco sério reduzir a saída do Reino Unido à crise da zona euro. Outras causas, internas, contribuíram igualmente para isso (disputas internas do partido conservador, falta de rigor e seriedade por parte dos media, ignorância generalizada sobre o que é a União Europeia, nacionalismo). Mas, fundamentalmente, a União Europeia, na forma como lidou e tem lidado com a crise do euro, passou uma imagem negativa e sem visão de futuro, mais preocupada em punir os estados "não cumpridores" do que em oferecer um projeto de futuro.

É hoje consensual que David Cameron acabou por se revelar um primeiro-ministro desastroso para o seu próprio país, sempre mais preocupado com a sua própria sobrevivência política do que com o interesse nacional e muito menos europeu. O seu posicionamento relativamente à União Europeia foi sempre problemático (tal como o do líder da oposição, Jeremy Corbyn) e a sua campanha pela manutenção do Reino Unido pouco convincente. Mas não menos convincente tem sido a gestão da crise do euro por parte da União Europeia, alicerçada numa liderança alemã economicamente dogmática e politicamente sem rumo. É também por culpa de Bruxelas e de Berlim que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia.


 
 
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André Barrinha



 
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