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19-06-2016        Jornal de Notícias

Nas últimas décadas do XIX falou-se muito de possibilismo para designar estratégias sindicais e políticas que, adotando a tendência de fuga à dureza do combate por utopias emancipadoras, procuravam as oportunidades possíveis para obter melhorias, nomeadamente nas condições de vida dos trabalhadores, no quadro das instituições e das relações de poder existentes.

Aquele possibilismo foi inviabilizado pela agudização da luta de classes, em particular entre as duas grandes guerras do século XX para, de certa forma, renascer depois, reformulado com nuances, em contexto novo e desafiador. Sobressaía então, para milhões e milhões de seres humanos, a esperança na construção de sociedades socialistas, processo esse em marcha em múltiplos países, que deu imensa força à luta geral dos trabalhadores e dos povos. O possibilismo surgia agora bastante enriquecido por valores da liberdade e da democracia que se afirmaram na luta plural contra o nazismo.

O espaço temporal que vai do final da II Guerra ao início dos anos 80 foi de conquistas importantes para os trabalhadores e os povos, e de consolidação da democracia. Este episódio de conciliação entre democracia e capitalismo - a que alguns, sem rigor, chamam "intervalo" da luta de classes - ocorreu em grande parte da Europa (e não só), num quadro em que ainda existia uma limitação à liberdade de movimento dos capitais e das mercadorias, facto que proporcionava às instituições políticas de Estados Sociais de Direito Democrático um considerável ascendente sobre o poder económico.

Entretanto, foi sendo, cada vez mais, tempo de acomodação descuidada a um pretenso sistema misto que prometia o melhor de dois mundos. O estilo de vida propagandeado dificilmente podia ser universal, mantinha-se a prevalência de lógicas neocoloniais e foi-se instalando um conceito de competitividade negador do desenvolvimento humano e da harmonização no progresso. Sob o pano de fundo daquela trégua social, os capitais foram descobrindo novas formas de quebrar as amarras que os mantinham ligados à terra dos compromissos e aceleraram novos voos globais de domínio na produção e na finança.

Do sucesso desses voos resultou uma forte compressão do poder das instituições políticas democráticas e a perda do seu ascendente sobre o poder económico e financeiro, fatores que nos levaram ao ponto onde hoje nos encontramos: o tempo em que os "poderes soberanos" já não são capazes de cobrar impostos aos capitais móveis e, pelo contrário, pagam-lhes tributo para os seduzir, atrair ou impedir de escolherem outras paragens.

Este tempo apresenta-nos esgotados os possibilismos ensaiados. Deixou de existir espaço, entre os pingos da chuva das imposições do poder financeiro/económico, para o progresso das condições de trabalho e de vida das populações. Os governos que optam pelas receitas e regras do possibilismo instituído acabam satisfazendo os interesses dos mercados e negando os mandatos populares com que foram eleitos. Por tudo isso, as lutas tornaram-se muitas vezes defensivas, quantas vezes de sucesso impossível e/ou reduzidas a rituais para persistência de valores. O "possibilismo conservador" intrínseco ao pensamento único, ao neoliberalismo, esse jamais será motor de mudança. O tempo de agora é, pois, imperiosamente, o da afirmação do impossibilismo, em que a política não pode ser já apenas a arte do possível.

É preciso afinar a arte de forçar constrangimentos externos e internos. Inventar vacas que voam, tentar o impossível uma e outra vez para que outros possíveis aconteçam (Max Weber), partir "arcos da governação", estalar dentes a pactos de estabilidade, moldar de outra forma ou até fazer estalar "uniões de aço".

Há que não fugir à exigência de realizar o aparentemente impossível, ou desaguaremos rapidamente em desastre. Trabalhemos a ampliação de movimentos sociais e culturais que alteram a favor dos povos as condições objetivas e subjetivas necessárias a alternativas, trabalhemos a construção de identidades entre os anseios dos povos e as agendas políticas, afirmando a natureza do futuro a construir.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva