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26-03-2016        Público

Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã ou a TVI são a Rede Globo, mas as estruturas profundas do caso José Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam algumas semelhanças inquietantes

O sistema judicial português está imune aos perigos da desordem jurídica? A grande visibilidade pública da justiça resulta, em grande medida, dos casos que envolvem a elite política e financeira do país, e que nas últimas semanas atingiram também o poder judicial. Sucederam-se na ribalta mediática os casos Melancia, UGT, Partex, Faturas falsas, JAE, Caixa Económica Açoreana, Universidade Moderna, Freeport, Portucale, Operação Furacão, Submarinos, Face Oculta, Monte Branco, BPN, BPP, BCP, Vistos Gold, BES/Ricardo Salgado e, por último, José Sócrates, todos casos de criminalidade económica (corrupção, lavagem de dinheiro, fuga ao fisco, tráfico de influências). Refiro-me exclusivamente à notoriedade do sistema judicial na área da criminalidade económica mas há que ter em conta que a notoriedade da última década também ocorreu em outras áreas (Casa Pia, Carlos Cruz). Há um inequívoco sinal de perda de impunidade de quem tem poder e dinheiro. E isso é um grande salto democrático. Mas, a ideia de que a justiça chegou aos poderosos significa um combate verdadeiramente sistemático, sem tréguas, à corrupção? Significa que a justiça compreendeu a danosidade para a democracia e para o Estado social dos atos de banditismo sobre os dinheiros públicos e, em geral, da cooptação do Estado por determinados interesses privados? Perante as elites políticas e económicas a justiça é cega ou, pelo modo como opera, faz com que certos processos sejam desenvolvidos mais proactivamente que outros, criando assim a perceção da seletividade?

O caso Sócrates, mais do que a confirmação de um novo padrão do ativismo judiciário, parece indicar uma mudança significativa e por isso merece uma referência especial. Nele, a justiça está a arriscar, mais do que em qualquer outro, a sua legitimação social e política. Não deixa de ser perturbador que a justiça portuguesa, tendo mantido preso preventivamente, por largos meses, um ex-primeiro ministro, não só não tenha cumprido os prazos legais de final do inquérito, como não mostre fortes sinais de se preocupar com isso. A mensagem parece clara: o sistema de justiça português endogeneizou a ineficiência, convive bem com ela e, talvez esteja a desvalorizar o impacto negativo que nela pode ter a combinação explosiva entre ineficiência e seletividade. A mobilização judicial-mediática do caso José Sócrates tem sido de tal ordem que, se o réu não for definitivamente condenado pelos crimes por que está indiciado, os portugueses não poderão deixar de pensar que o circo montado à volta deste caso teve mais a ver com política do que com justiça. Em meu entender, tal percepção, a concretizar-se, pode ser fatal para a legitimidade democrática da justiça. E nesse caso os mais avisados terão presente que, independentemente da culpabilidade que se venha a provar, alguma relação deve haver entre o modo como o processo está a ser tratado e o facto de o réu, quando primeiro-ministro, ter declarado logo no início do seu governo, em 2005, que estava decidido a acabar com dois tipos de situações de privilégio na sociedade portuguesa, a dos magistrados judiciais e a das farmácias. Os mais avisados lembrar-se-ão ainda da guerra que se instalou nos anos seguintes entre o Ministério da Justiça e os órgãos do poder judicial sobre o aparentemente eterno problema do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã ou a TVI são a Rede Globo, mas as estruturas profundas do caso José Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam algumas semelhanças inquietantes. Para nos sossegarmos precisamos de saber mais sobre a qualidade das acusações e das decisões judiciais; sobre as razões de arquivamento de muitos casos, por exemplo, do caso dos submarinos em que os corruptores alemães foram condenados sem que aparentemente houvesse corrompidos portugueses; e ainda sobre a ação do Ministério Público em face dos muitos relatórios do Tribunal de Contas e as suspeições que eles geram sobre altos negócios envolvendo o Estado, designadamente, com as parcerias público-privadas e com as privatizações. Sem tal conhecimento, o fantasma da seletividade política do zelo investigativo e acusatório paira sobre a justiça portuguesa.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos